Do que não falamos quando falamos de crítica – por Antônio Xerxenesky

Literatura

01.11.11

O Crítico Literário Hipotético tem quarenta e dois anos. É doutor em letras, e leciona na faculdade onde se formou, tentando ensinar qualquer coisa para alunos desinteressados de 18 anos. É moderadamente feliz em seu casamento; fantasia com duas alunas suas, mas não tem coragem de fazer nada, ao contrário de seus colegas. Sofre de úlcera. Recentemente, uma dor de dente o tem incomodado muito. Pode ser bruxismo, mas ele não quer usar aparelho dentário aos quarenta e dois anos. Ele escreve resenhas para jornais e revistas importantes. Sente que a crítica literária no âmbito da academia é muito restrita – uma forma de comunicação que não atinge mais do que meia dúzia de pessoas. Suas ideias naquele mundo não repercutem ou reverberam. Por isso escreve também as infames críticas jornalísticas – pelo dinheiro que não seria. Recebe caixas e caixas de livros com lançamentos. As editoras nem mais perguntam se ele quer receber o lançamento X ou Y, apenas mandam os livros.

Um jornal encomendou uma resenha do livro novo de Philip Roth e também do Romance Promissor do Jovem Escritor Bacana. O Crítico Literário Hipotético começa a ler o Romance Promissor do Jovem Escritor Bacana. Observa a foto do rosto do Jovem Escritor Bacana na orelha do livro. Lembra-se que já viu o rapaz em algum evento literário, cercado de admiradores. Lembra-se das declarações polêmicas que o jovem fez nas redes sociais. Pela trigésima página, larga o livro, sem vontade de ler mais, e decide começar o novo de Roth. Como sempre, Roth trata do medo da morte, das doenças que chegam com a idade (o crítico se recorda de sua úlcera), do desejo sexual que parece minguar com o passar dos anos (o crítico se recorda de suas duas alunas, aquelas duas alunas específicas), da relação entre um homem mais velho e uma garota mais jovem (o crítico passa a enumerar, mentalmente, livros nos quais um professor seduz uma aluna: Desonra, de Coetzee; Partículas elementares, de Houellebecq; Sobre a beleza, de Zadie Smith; uns dois ou três livros do próprio Roth). No fim de semana, o crítico senta e escreve duas resenhas. Fala sobre a função da literatura, a perplexidade do escritor perante o mundo. Fala de Kafka, Borges e Piglia. Fala do cuidado estilístico, da dificuldade em construir personagens críveis. Não menciona, em momento algum, a úlcera, as alunas que povoam sua imaginação. Não comenta a vergonha que consideraria usar um aparelho dentário aos quarenta e dois anos.

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Não sou um crítico profissional. Costumo escrever resenhas aqui e acolá e tenho uma produção acadêmica tímida. Valorizo e aprecio a profissão de crítico. Sonho com uma carreira nessa linha, inclusive. De modo geral, me dão a liberdade de escolher quais livros quero resenhar, e sempre prefiro livros que acho que vou gostar (de um autor que já me agrada, ou algum desconhecido sobre o qual ouvi bons comentários). Se achar que o livro não vale um tostão, direi isso com todas as letras, embora considere um desperdício dar espaço para livros que não merecem a atenção do leitor. Afinal, como todos estão cansados de saber, os cadernos culturais são terrivelmente magricelas. Porém sempre me ponho a pensar o seguinte: quanto da minha vida pessoal não está influenciando aquilo que escrevo e minhas maneiras de ler um livro?

A visão “biografista” que tenta buscar relações entre a obra de um autor e sua vida pessoal está morta e enterrada desde o advento das teorias do formalismo russo. Mas e a biografia do crítico? A úlcera do Crítico Hipotético não pode ter deixado o sujeito indisposto para certas leituras? O fato de que ele passou dos quarenta não o deixará levemente rancoroso em relação a um jovem escritor que é visto como uma “promessa”? Seus problemas amorosos não ecoarão em sua cabeça ao se deparar com narradores de Roth, sempre homens brancos de classe média com problemas de relacionamento?

Se, de fato, todas estas questões influenciam o julgamento crítico, o que ele pode fazer? Deveria abordar uma perspectiva totalmente pessoal e subjetiva, começar uma resenha dizendo: “Ontem eu estava andando na rua e…”? Ou então buscar uma leitura mais interpretativa da obra analisada, se distanciando, assim, de julgamentos de valor? É o que tenho tentado fazer em minhas últimas resenhas, com o slogan mental: “Mais interpretação, menos guia de compras”. Mas nossas interpretações não seriam igualmente abaladas por motivos extraliterários?

Nunca vou me esquecer de quando emprestei minha cópia de O passado, do Alan Pauls, para um amigo mais jovem. O passado figura entre meus livros favoritos de todos os tempos, e a obra não transmitiu nada a esse meu amigo. Ele não extraiu nenhuma interpretação empolgante do livro. Era apenas um romance bem escrito e nada mais. Teria a falta de um relacionamento amoroso turbulento no passado o impedido de fazer uma leitura mais rica do livro de Pauls? É o que especulo. Quando contei aos meus pais que detestei Desvarios no Brooklyn, de Paul Auster, eles retrucaram que eu não estava na idade certa para ler aquele livro. Quanto importa a idade? Quanto pesa a bagagem emocional? Não sei, não faço ideia. Talvez, quando descobrir, possa me considerar um crítico de verdade.

* Antônio Xerxenesky é autor de A página assombrada por fantasmas (2011)

** Na imagem da home que ilustra este post, o escritor argentino Alan Pauls

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