Enlutar-se, fazer luta do luto

Colunistas

16.11.15

Somos um país sem nenhuma tradição de luto público ou político. As bandeiras não descem a meio pau quando dezenas de vidas são perdidas em Minas Gerais. Homenageamos nossos mortos à moda mais provinciana, falando bem de quem morreu como se fosse pecado dizer a verdade sobre eles. É tão triste a nossa incapacidade de reconhecer vidas perdidas dignas de serem lamentadas que podemos acabar metidos em debates estéreis como o que invadiu as redes sociais depois dos atentados em Paris. Estabeleceu-se uma disputa entre quais mortes teriam mais valor e quais manifestações de luto seriam mais legítimas.

(Felipe Dana/AP)

A mim parece óbvio que a falsa disputa esconde um clamor por enlutar-se, pelo luto público capaz de expressar a indignação com os acontecimentos em Minas Gerais, mas não apenas. Em Bento Rodrigues, dezenas de vítimas, desabrigados, um rio transformado em dejeto assassino, e em nenhum momento as vidas perdidas foram enlutadas publicamente. É como se as perdas, por anônimas, fossem exclusivamente individuais, restritas apenas às famílias daqueles que perderam seus familiares, suas casas, suas vidas. Todos os dias, pequenas ou grandes tragédias passam à história assim, no anonimato e na falta de reconhecimento de que cada uma daquelas vida tinha valor social e coletivo.

Para os mortos de Paris, ao contrário, há uma onda de comoção pública que se espalha pelo mundo ocidental, chega ao Brasil e produz esse estranho fenômeno da hierarquia entre quais vidas perdidas valem mais o nosso luto, a nossa luta. Nesse debate sem fundamento, descubro que conheço mais gente em Paris do que em Mariana (tenho um amigo querido que mora em Mariana, felizmente longe do distrito de Bento Rodrigues). Mas meu luto pelas consequências horríveis do crime ambiental em Minas Gerais não é individual, é político. Não quero viver em um país onde as grandes empresas podem destruir o meio ambiente, deixar milhares de pessoas sem água, fazer do vale do Rio Doce uma terra arrasada e morta. Por isso, estou de luto por Mariana mesmo sabendo que meu amigo está são e salvo. Por que não é apenas da vida dele que se trata, é da vida de todos aqueles que partiram e dos que ainda partirão por esse crime.

Falta enlutar publicamente os mortos de Mariana porque falta luto público para todos os nossos mortos. Esse é um problema político que me incomoda há tempos. Quando acordo no Rio de Janeiro e descubro que um acidente de ônibus matou dez pessoas, penso que naquele dia teria sido necessário que a cidade inteira chorasse. E só no dia em que a cidade inteira chorar essas mortes anônimas vão ganhar algum valor. A banalidade da morte anônima se expressa não apenas na histórica impunidade dos responsáveis, mas principalmente na impossibilidade de enlutar-se – e portanto, também de lutar – por quem partiu.

Lendo Quadros de guerra, da filósofa Judith Butler, encontrei eco para esse mal-estar que fica tão evidente quando vidas anônimas são perdidas e não interrompemos as nossas pequenas rotinas para lamentá-las. Espécie de continuação de Precarious life, Quadros de guerra também dialoga com O clamor de Antígona, da mesma autora, quando discute o problema do luto. Butler propõe exatamente esta reflexão sobre quais vidas têm o direito a serem reconhecidas – e portanto são passíveis de luto – e quais vidas podem ser descartadas.

Para fazer este debate, ela se vale da teoria do enquadramento, do sociólogo Erving Goffman, e observa como determinadas perdas são emolduradas como naturais – a morte de prisioneiros, no exemplo dela, ou a morte de trabalhadores anônimos vítimas da catástrofe de Mariana – e outras são enquadradas como dignas de serem enlutadas, como os mortos de Paris. Ao invés de discutir quais mortes têm mais valor ou de tentar estabelecer uma hierarquia da indignação, talvez se possa revisitar Antígona, como fez Butler, e pensar na atualidade da tragédia de Sófocles, paradigma do direito a qualquer luto: ou qualquer vida merece ser enlutada, ou nenhuma merecerá.

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