A peça Moliére, uma comédia musical, dirigida por Diego Fortes, é a primeira encenação no Brasil do texto da dramaturga e roteirista mexicana Sabina Berman. Produção do grupo Teatro Promíscuo, criado por Elcio Nogueira Seixas e Renato Borghi em 1993, o espetáculo chega ao Rio de Janeiro depois de uma temporada de sucesso em São Paulo, e trata da relação entre a comédia e a tragédia. Duas conhecidas figuras históricas, Molière (Matheus Nachtergaele, indicado ao Prêmio Shell como melhor ator) e Racine (Elcio Nogueira Seixas), encarnam respectivamente essas forças.
A trama, situada num momento histórico preciso, gira em torno da relação conflituosa entre os dois grandes nomes do teatro francês, cujo pano de fundo foi a França absolutista de Luís XIV (interpretado por Nilton Bicudo) em um de seus momentos mais gloriosos, na metade do século XVII. A princípio, o enredo parece se articular apenas em torno da oposição entre comédia e tragédia. Ao longo do espetáculo as figuras de Molière e Racine vão mostrando que se complementam naquilo que têm de diferentes. Se há uma força de antagonismo na história, é o arcebispo Péréfixe (Renato Borghi), moralista e hipócrita, que se contrapõe aos dois.
Na construção da trama chama a atenção o figurino assinado por Karlla Girotto, corroborando o tom cômico que atravessa o espetáculo. Funciona como uma narrativa dentro da narrativa maior, que ao mesmo tempo colabora com a peça, aprofundando as relações propostas pela trama, e se destaca, pois tem humor e é belo. Evidencia o modo como as roupas não apenas representam nossas personalidades, mas participam ativamente da constituição do que somos.
Molière é um grande elogio ao riso e ao que ele tem de social e coletivo. A peça é narrada por Racine, o trágico, que aparece triunfante, abrindo o espetáculo. Usa peruca cacheada e comprida – como era moda entre os cortesãos franceses no final do século XVII, à Luís XIV; óculos escuros; brincos de brilhante; jabô de renda branca; casaca enrijecida, com ombreiras e galões; calças compridas, justas do joelho pra baixo, que terminam nos tornozelos; bengala; e botas de verniz vermelho, de salto alto.
Na cena seguinte, quando voltamos ao início da trama, Racine reaparece diferente daquela primeira figura vaidosa e segura. Antes de se tornar famoso e ser reconhecido pelo rei como um grande autor, veste uma casaca velha, esburacada, dois números maior que o seu tamanho, e botas baixas e gastas. Durante toda a montagem, as roupas de Racine são escuras, neutras e sem brilho, menos os acessórios, exagerados e espalhafatosos. Seu corpo está sempre coberto e seu rosto está revestido de maquiagem branca, como um fantasma, ou um palhaço.
Os figurinos de Racine e de seu irmão, Gonzago (Georgette Fadel), são escuros e opacos, contrapondo-se aos de Molière e sua trupe, repletos de luz e cor. Molière inicia o espetáculo vestindo uma túnica curta de lurex dourado; capa de paetê dourado; calça de veludo, muito justa, rosa-claro; sapato repleto de pedrarias; colares de ossos, correntes de bronze. Não usa peruca e seu corpo está constantemente em evidência: desde o torso nu das primeiras cenas ao desnudamento final, quando apenas não se esquece de levar consigo “suas botas”.
É interessante perceber como são explorados os dados biográficos na construção dos figurinos de Molière e Racine. Os dois representam mundos distintos, e a indumentária atesta essa diferença. O texto de Luci Collin no programa da peça informa que o pai de Molière foi tapeceiro real, e ele teve uma formação privilegiada, com acesso à vida na corte. Já Racine ficou órfão na infância e foi criado pela avó. Estudou retórica, leu os clássicos, apaixonou-se pelo teatro e ascendeu socialmente, tornando-se o primeiro dramaturgo francês a viver do dinheiro das próprias peças.
Um dos figurinos de Molière é um traje repleto de borlas em tons pastel: rosa, azul, amarelo. Além de nos remeter à filiação de Molière, já que seu pai era tapeceiro, esse traje lembra tanto o gibão dos séculos XVI e XVII, como os mantos confeccionados por Arthur Bispo do Rosário. Molière é nobre, visionário, louco e santo. Já o figurino de Racine pretende acompanhar seu progresso profissional. A casaca furada, dois números maior que o seu tamanho, gradualmente torna-se mais curta, justa e estruturada. O número de acessórios também cresce. Ao final, que é o início da peça, ele está todo montado.
Racine termina a peça modificado, não apenas exteriormente. Um pouco melancólico e, finalmente, irônico. No percurso da trama, o figurino segue este processo. A roupa, cada vez mais elegante e pomposa, poderia lhe servir para esconder o passado fora da corte, seus medos e tiques. Por ter uma trajetória de ascensão social, Racine veste-se de modo sóbrio, como um burguês. Está na essência da roupa burguesa masculina, além de o desejo de diferenciar-se da exuberância do vestuário da nobreza, a vontade de se destacar pelo trabalho. O que o homem burguês da virada dos séculos XVIII e XIX quer evidenciar em sua aparência não é o privilégio de classe. Ao contrário, a roupa ajustada, confeccionada com materiais maleáveis, como a lã, proporciona uma figura ágil e discreta, que se movimenta e trabalha.
Observando a roupa de Racine, vemos que ela pretende se aproximar desse vocabulário vestimentar. Mas o figurino do personagem, e o modo como o ator veste suas roupas, acaba por dar uma banda na sobriedade e na neutralidade das normas burguesas do vestir masculino. Suas roupas funcionam perfeitamente no jogo da rigidez a que está submetido o personagem cômico. Por mais que Racine tente fugir da comédia, escondendo-se em roupas bem cortadas, o ridículo está ali, nos ombros excessivamente duros de suas jaquetas, no exagero de sua peruca e de seus broches de brilhante, na maneira como anda com as botas de salto fino e no verniz vermelho – fazendo referência aos sapatos de salto e sola vermelhos de Luís XIV, numa demonstração máxima de esnobismo e poder, já que essa era uma das cores mais caras usadas no vestuário. Quando Racine ganha lugar de destaque na corte do rei, passa a usar uma bota de salto e bico finos, de couro, o que dá uma comicidade involuntária aos gestos do ator.
O espetáculo, que segue em temporada até dia 2 de setembro, evidencia a importância de um figurino bem realizado para a compreensão dos personagens, do período histórico, da proposta da direção, para uma imersão completa do espectador no espírito da peça. Rimos de Racine e nos comovemos com Molière. Ao fim o sentimento é de reconciliação, mesmo que temporária. A peça nos faz rir e chorar, sentir prazer e raiva, sem precisar escolher entre a comédia e a tragédia.