Dizer que o Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro abriga, entre setembro e novembro, a maior e mais abrangente exposição do albanês Anri Sala no Brasil é apenas uma meia verdade. Isso porque a casa na Gávea, projetada por Olavo Redig de Campos e considerada um marco da arquitetura moderna da década de 1950, não servirá somente como galeria para Anri Sala: o momento presente. Muito além disso, a casa é uma coadjuvante de peso da exposição, projetada especialmente para o espaço, evidenciando a relação entre som e arquitetura que o artista vem explorando cada vez mais em seus trabalhos. Durante o período da mostra, que foi inaugurada dia 10, com uma conversa entre o artista e a curadora Heloisa Espada, andar pelos corredores, salas e jardins do IMS-RJ será, para o público, uma experiência sensorial impactante, em que a música dissonante invade os ambientes para compor histórias junto a fotografias, objetos e videoinstalações produzidas em várias épocas.
“A arquitetura é a moldura do som, ela contém o som”, resume Sala, que reorganizou a circulação natural dos espaços da casa, convidando os visitantes a fazer um percurso distinto e, portanto, a lançar um olhar distinto sobre o lugar enquanto o percorre. “Uma exposição não serve apenas para mostrar obras editadas na origem, mas também para mostrá-las onde pertencem, ao aqui e agora, à visita que é o destino final”, diz ele. Heloisa Espada também ressalta a questão do momento presente no trabalho de Sala. “Ano que vem abriremos uma exposição dele no IMS de São Paulo, e ela não será exatamente essa que veremos aqui no Rio”.
Dos jardins às galerias internas, o som estará sempre ao redor. Logo na entrada, por exemplo, a instalação batizada de No window no cry traz , colada num dos vidros do corredor, uma pequenina caixa de música que toca suavemente “Should I stay or should I go”, da banda inglesa The Clash. Espécie de hino punk, normalmente tocada e dançada de forma quase raivosa, a música está presente de forma delicada em outros dois trabalhos de Sala, ambos em vídeo: em Le Clash (2010), a canção é ouvida num realejo e numa caixa de música nas ruas de Bordeaux, na França; em Tlatelolco Clash (2011), filmado na Praça das Três Culturas, na Cidade do México, “Should I stay or should I go” é tocada também num realejo por diversas pessoas que vão inserindo os cartões perfurados com a música, gerando ritmos diferentes.
Na área dos cobogós, a instalação Bridges in the doldrums reúne quatro tambores que vibram ao som dos trechos de 74 músicas de gêneros diversos, do folk ao jazz, tocados por três instrumentistas de sopro. Em outra videoinstalação, Answer me, uma mulher tenta sem sucesso chamar a atenção do parceiro, que abafa o som da voz dela ao tocar bateria numa altura ensurdecedora. “A música, para Sala, é quase uma metáfora da dificuldade que temos de lidar, de maneira objetiva, com a história. Ela é invadida pelas circunstâncias do momento presente”, observa Heloisa.
Por isso a curadora reforça que, tão fundamental quanto a relação entre som e arquitetura é o entrelaçamento destas com aspectos políticos e históricos que Sala explora em sua obra. Um dos trabalhos vistos no IMS-RJ é Intervista – Find the words, vídeo de 1998 feito por Sala como trabalho de graduação na École Nationale Supérieure dês Arts Décoratifs, em Paris. Misturando ficção e fatos reais, o artista, que nasceu em Tirana, em 1974, aborda a situação de seu país natal pós-queda do regime comunista ao buscar reconstituir, de várias formas, um velho filme no qual a mãe discursa num congresso do partido. Sem o som original, há muito tempo perdido, Sala usa diversos recursos para recuperar as palavras exatas da mãe, também sua entrevistada. Ela acaba não reconhecendo o que foi dito há tempos, num estranhamento presente. “Sala ganhou muitos prêmios com este filme, que o projetou internacionalmente”, conta Heloisa.
Em Làk-kat 3.0 o que está em questão são as relações de poder. Gravado no Senegal, o vídeo mostra uma criança que tenta repetir, em uólofe, a língua local, várias palavras que foram se perdendo ao longo do tempo no país colonizado pela França. Muitos vocábulos sumiram do uólofe e se mantiveram apenas em francês. “Sala notou também que há no uólofe muito mais palavras para designar os matizes entre o preto e o branco, nomes que não existem no francês. Ou seja, o que ele mostra é que há circunstâncias culturais que criam um vocabulário quase intraduzível”, diz Heloisa, que quis trazer o trabalho ao Brasil justamente para apontar estas diferenças culturais. Para isso ela contou com a colaboração de três escritores que legendaram as palavras faladas em uólofe pela criança: José Luis Peixoto, de Portugal; Ondjaki, de Angola, e Noemi Jaffe, do Brasil.
A curadora reconhece que a aproximação do público com o trabalho de Sala não se dá de imediato, e pode ocorrer de maneiras diferentes. “As camadas vão chegando, se interpondo aos poucos”, diz ela, que preparou um pequeno guia para o visitante com breves explicações sobre a mostra, suficientes para informar sem interferir na compreensão que cada um poderá ter das obras.
O convite para o passeio sensorial está feito pelo próprio Sala: “Espero que o espectador e ouvinte tenha a forte sensação de se estar aqui e agora”.