Os amigos, Ventos de agosto e a cartografia dos afetos

No cinema

28.11.14

A expressão “cinema dos afetos” se banalizou nos últimos tempos, mas em poucos casos ela é tão apropriada quanto para qualificar a filmografia de Lina Chamie. Seu novo filme, Os amigos, é a prova cabal disso.

Quem conhece os longas-metragens de ficção anteriores da diretora (Tônica dominanteA via láctea) sabe que ela se empenha numa espécie de cartografia afetiva da cidade de São Paulo, por onde se deslocam personagens movidos pela carência e pela potência do afeto.

Em Os amigos a ação se concentra num único dia, balizado por dois acontecimentos importantes na vida do arquiteto Theo (Marco Ricca): o enterro de um velho amigo de infância e o aniversário do filho de uma amiga (Dira Paes). Entre um e outro, Theo se locomove por uma cidade congestionada e caótica, em que todas as estações do ano alternam-se no mesmo dia. Essa jornada é entremeada por flashbacks da infância e cenas de uma adaptação teatral da Odisseia representada por um grupo de crianças.

Saga urbana

Desnecessário dizer que a própria Odisseia (o tema do acidentado e perigoso retorno ao lar) e sua versão moderna, o Ulisses de Joyce (“a volta ao dia em oitenta mundos”, para dizer como Cortázar), são a referência e a bússola dessa modesta saga urbana.

Lina Chamie e Marco Ricca na filmagem de Os amigos

A habilidade de Lina Chamie consiste em manter coeso e envolvente seu conjunto de focos narrativos (que inclui o pequeno drama da empregada doméstica de Theo, numa viagem de ônibus pela cidade alagada), sem perder o ritmo e a vibração poética.

Na dialética entre concentração e dispersão que esse tipo de construção narrativa pressupõe, talvez haja uns poucos momentos dispensáveis e frouxos (como os diálogos com um jovem casal de clientes, no escritório de Theo, ou a discussão deste com um engenheiro sobre a reforma de uma escola), mas em geral o olhar afetuoso e poético da diretora mantém o edifício em pé. Tudo conflui, como se verá, para a sutil e permeável fronteira entre a amizade e o amor (no sentido erótico e carnal da palavra).

Faltou dizer que a música, como sempre no cinema de Lina Chamie, cumpre um papel fundamental nessa ponte entre o cotidiano e o mito atemporal construída pelo filme. Por outro lado, dizer que Marco Ricca e Dira Paes são atores formidáveis é chover no molhado. O que chama a atenção aqui é o visível entrosamento, o prazer de contracenar que traduz lindamente a ternura entre os personagens.

Ventos de agosto

Uma abordagem bem distinta, mas igualmente poderosa, de ambivalentes relações humanas e de interação entre personagens e seu meio encontra-se em Ventos de agosto, primeiro longa de ficção do pernambucano Gabriel Mascaro, conhecido por documentários como Avenida Brasília Formosa Doméstica.

Aqui, acompanha-se de modo distendido – e aparentemente descosturado – o dia a dia de uns poucos personagens num vilarejo no litoral de Alagoas. Jeison (Geová Manoel dos Santos) trabalha catando cocos e, nas horas vagas, pratica uma pesca submarina artesanal, em busca de polvos e lagostas. Sua namorada, Shirley (Dandara de Morais), que já morou na cidade grande, acompanha-o no barco, dirige o caminhãozinho do coqueiral e cuida da avó idosa.

Tudo se passa como que num tempo fora do tempo, em que signos da modernidade (celular, iPod, música pop) convivem com ritmos e costumes arcaicos. Esse contraste ganha realce quando entra em cena um pesquisador (o próprio Mascaro) empenhado em gravar os sons do local, em especial os turbulentos ventos de agosto.

Cena de Ventos de agosto.

Não ficamos sabendo quem é esse forasteiro, nem o motivo de sua pesquisa. Tampouco sabemos se é dele o cadáver que aparece na praia. O que importa é que o destino desse corpo assume um caráter quase surreal, de humor negro e desconcertante, banhando os personagens numa nova luz.

Narrativa aberta

Ao contrário de Os amigos, que acaba por amarrar todos os seus pontos numa narrativa circular, Ventos de agosto permanece aberto, num sentido bastante radical. Parece que o filme poderia continuar indefinidamente, revelando a cada sequência novos aspectos e belezas daquele ambiente físico e humano.

Dito assim, pode-se dar a falsa impressão de monotonia, mas a todo momento uma imagem forte, original e bela – como os relâmpagos que iluminam o mar revolto e os estragos do vento numa noite de tempestade, ou os corpos nus dos jovens amantes filmados do alto sobre os cocos do caminhão – impacta a retina e incendeia a imaginação do espectador. É o que se costuma chamar de epifania.

, , , , , ,