Hoje foi divulgado o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2014, o francês Patrick Modiano, nascido em 1945. Está apenas começando, portanto, o movimento de descoberta e, para alguns, de resgate do autor. A ideia de “resgate” se justifica na medida em que Modiano seria, em tese, um escritor bastante conhecido no Brasil, uma vez que a editora Rocco publicou vários de seus livros entre 1985 e 2003 (hoje ele sequer figura no catálogo no site da editora). A ironia da situação – um autor traduzido e publicado durante um período, em seguida deixado de lado, com seus livros agora só disponíveis em sebos, ressurge, da noite para o dia, com o peso de um Nobel – certamente agradaria ao próprio Modiano, já que a maioria de seus livros trata justamente disso, a dinâmica tanto histórica quanto subjetiva da memória e do esquecimento.
Um tema muito presente na ficção de Modiano é a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial – especialmente na chamada “Trilogia da Ocupação”, composta por seus três primeiros romances, La Place de l’Étoile, de 1968, Ronda da noite, de 1969, e Les Boulevards de Ceinture, de 1972. A ocupação nazista lhe dá acesso a três grandes temas que serão continuamente retrabalhados nos livros posteriores: 1) o trauma histórico como vivência coletiva, como vergonha nacional a ser recalcada; 2) as estratégias de sobrevivência (tanto física quanto psíquica) desenvolvidas pelos indivíduos expostos a esse trauma coletivo; 3) as origens familiares dele próprio, Modiano, que, tendo nascido ao final da guerra, só pôde preencher as lacunas através da imaginação.
Em Ronda da noite, cuja edição brasileira é de 1985, os três temas convergem na construção do narrador e da história que conta. Trata-se de um agente duplo, que trabalha para a Resistência e para a Gestapo, sem professar qualquer tipo de pertencimento que não seja da ordem do simulacro e do falso. Mesmo o momento de sua decisão carece de profundidade, de lastro subjetivo: “Relendo naquela noite a Antologia dos traidores, de Alcibíades ao capitão Dreyfus, pareceu-me que, afinal, o jogo duplo e – por que não? – a traição conviriam ao meu caráter irrequieto”. Em paralelo a esse registro bastante colado à aventura identitária do narrador, a narrativa apresenta tons detetivescos, com confrontos, diálogos rápidos e a permanente tensão da guerra em surdina entre os nazistas e os resistentes – aquele ambiente que Jean-Pierre Melville capturou em seus filmes, mais ou menos na mesma época, como O Exército das sombras, de 1969.
Com a figura do agente duplo em Ronda da noite, Modiano articula um drama humano de amplas proporções, que se repete nos mais variados contextos: a possibilidade do sujeito, diante de uma situação extrema, violentar aquilo que lhe é mais caro, mais íntimo, mais pessoal. É o que está em jogo na colaboração, por exemplo, quando franceses ajudam alemães a perseguir e matar franceses; mas também no nível pessoal do antissemitismo, outro tema caro a Modiano, como podemos perceber na citação de Ronda da noite, com a menção ao “capitão Dreyfus” – uma menção que é, de certa forma, um resgate do romance anterior, La Place de l’Étoile, cujo narrador é um judeu antissemita que trabalha para a Gestapo.
A memória em sua obra, portanto, não é ligada à nostalgia, mas a uma espécie de desconfortável consciência de que não temos certeza daquilo que podemos ser, ou mesmo daquilo que fomos. Nesse ponto, e também por conta do período histórico considerado, Modiano pode ser talvez aproximado a W. G. Sebald, ainda que o alemão seja conhecido por suas frases longas e associações culturas, enquanto Modiano investe em um estilo mais direto e conciso. O Nobel francês não destoa de certa tendência da literatura francesa contemporânea que investe na construção de personagens menores, discretos, sobre o pano de fundo de uma tênue reconstrução histórica – algo que começou com Emmanuel Bove e continuou com Jean Echenoz, Pierre Michon e Andreï Makine.
Em um de seus melhores romances – que são sempre concisos e alusivos, mais mostrando do que dizendo –, Rue des Boutiques Obscures, de 1978, que ganhou no Brasil o título Uma rua de Roma, Modiano conta a história de Guy Roland, um detetive que decide investigar sua própria história, obliterada depois de um acidente que o deixou amnésico. É a movimentação física no espaço – as caminhadas, as viagens, os deslocamentos – que permitirá a Roland compreender melhor as várias camadas temporais de sua história, uma construção ficcional que lembra Noturno indiano, de Antonio Tabucchi.
Em outro excelente livro, Dora Bruder, de 1997, Modiano complexifica seu cenário recorrente com o questionamento da identidade não do narrador, mas de uma vida desconhecida, perdida no passado, que é resgatada a partir de um recorte de jornal: “Procura-se uma jovem, Dora Bruder, 15 anos”, diz o anúncio de 1941, e aí começa o romance. Começa o romance? Não seria exato ou justo com Modiano pensar seus livros como eventos isolados dentro de uma carreira. Dora Bruder intensifica sugestões apresentadas em livros anteriores, por exemplo. Acredito que parte da explicação do Nobel de Literatura ser, hoje, de Patrick Modiano está precisamente aí, nesse ponto em que uma carreira se encaminha em direção a uma poética, ou seja, um fluxo mais ou menos coeso, que se configura para o leitor a partir dessa recorrência tão particular de temas e questionamentos.