Pietá e o cinema da crueldade

No cinema

21.03.13

Pietá, do sul-coreano Kim Ki-duk, é um filme desagradável. Até aí, não se está fazendo nenhum juízo de valor. Afinal, também são desagradáveis quase todos os filmes de Lars von Trier, bem como os de Tsai Ming-liang, vários de Michael Haneke, o último de Pasolini (Saló) etc.

Eles configuram o que Truffaut, pensando em outros diretores, chamou de “cinema da crueldade”. O que os faz transcender o mero mal-estar e transfigurar essa experiência desprazerosa em iluminação e enriquecimento da sensibilidade é o fato de, cada um à sua maneira, encararem sem concessões os abismos mais sombrios do humano, aquelas regiões escuras das quais nos esforçamos para desviar o olhar.

Por que isso não acontece em Pietá? A meu ver, porque a narrativa se escora em duas explicações fáceis para a ultraviolência desencadeada, o que a torna, paradoxalmente, artificial, fútil e, no limite, gratuita. Antes de identificar essas duas explicações, cabe um resumo do entrecho. Na periferia de Seul, um jovem cobrador de dívidas a serviço de um agiota aleija e mutila os inadimplentes para se apossar do dinheiro do seu seguro de invalidez. Um dia, uma mulher ainda jovem aparece dizendo ser a mãe que o abandonou ainda bebê. Essa relação afetiva, que ele de início rejeita, mergulha o rapaz numa crise e o leva a questionar sua própria conduta.


http://www.youtube.com/watch?v=_-eAqO_t-Rs


Distante (a não ser nas primeiras imagens e em umas poucas outras) da estilização eventualmente afetada de outros filmes seus, Kim Ki-duk aqui se compraz num naturalismo sádico: em oficinas escuras, sujas e abarrotadas de peças e ferramentas, sucedem-se as cenas de mãos decepadas, ossos perfurados por brocas, braços esmagados por torniquetes, pernas fraturadas a pauladas e pisões. Modernas câmaras de tortura. Nesse contexto brutal, a ternura maternal exibida pela estranha recém-chegada opera como um contraponto irônico – e a ironia é reforçada desde o título por referências à compaixão cristã.


Amor e dinheiro

As potencialidades estéticas e dramáticas (e eróticas) dessa situação acabam sendo anuladas ou esvaziadas não só pela ênfase desnecessária, que beira a redundância, mas principalmente pelas duas explicações superficiais e simplistas a que me referi acima. Uma delas é de caráter subpsicanalítico: o protagonista é cruel porque não teve amor na infância. A outra é abstratamente política: o problema do mundo é o dinheiro, “o começo e o fim de todas as coisas”, como diz um personagem.

É interessante contrastar a abordagem da violência desse filme pretensamente “de autor”, ganhador do Festival de Veneza do ano passado, com a de um thriller “de entretenimento” como Killer Joe, comentado aqui na semana passada.

No filme de William Friedkin, a violência física brota organicamente de um contexto de deterioração social e moral. É precedida e alimentada, de certo modo, pela violência psicológica. Há ali uma exposição sem rodeios de uma sociedade fundada na competição individual, uma revelação das tensões que lhe são inerentes, bem como um desmonte implacável dos falsos valores religiosos e morais que buscam encobrir essa lei da selva.

Em Pietá, a brutalidade é fetichizada como algo: 1) inerente ao ser humano (vide a cena em que o patrão do protagonista o espanca em reprimenda por ter sido excessivamente violento, ou aquela em que a suposta mãe aleija um desafeto do filho); 2) fruto da falta de amor; 3) produto de um mundo desgraçado pelo dinheiro.

Sempre haverá quem ache mais “profundo” ou “artístico” o filme de Kim Ki-duk. Sinto muito, mas não é o meu caso.

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