Pignatari: temperamental e múltiplo

Literatura

07.12.12

Como poucos nomes no Brasil e no exterior, o escritor Décio Pignatari, que morreu na manhã de dois de dezembro, foi um multiartista: poeta (também em romances e contos), crítico literário, tradutor, publicitário, cronista de futebol e até mesmo ator, em Sábado, de Ugo Giorgetti. Falar de apenas uma de suas facetas seria negar exatamente o que ele quis ao longo da sua trajetória. Trata-se, sem dúvida, de uma característica de um nome que não quis se especializar, pois não era de seu interesse (não por comodismo, mas por temperamento). Não é possível defini-lo nem rotulá-lo como se faz com tantos autores e, portanto, não é possível estudar sua obra de forma tranquila. Se imaginamos desvendar uma faceta de seu caminho, outras já se abrem, e de maneira sempre complexa, pois seu pensamento resulta de um contato direto com os movimentos interligados de sua formação e de seu contato com nomes da vanguarda.

Mas há, nessa multiplicidade, uma unidade de pensamento que poucos artistas conseguiram ter, seja pelo talento demonstrado, seja pela polêmica – uma das especialidades de Pignatari. Ele não se acomodava em emitir apenas ideias. Havia – e há, pois sua obra permanece – no seu ideário uma tentativa de reavaliar vários autores e de colocar seu nome em estado permanente de desconfiança. Um deles foi Oswald de Andrade, que ele até “psicografou” numa de suas obras e o qual conheceu pessoalmente. Mas talvez quem melhor tenha se prestado à sua atenção foi aquele que chamou de “meu guru do quase sempre, do grande e do pequeno, sem fanatismos de supostas leituras completas” (Errâncias): Mallarmé, o poeta francês criador de Um lance de dados, do qual Pignatari traduziu, em três versões, o poema “A tarde de um fauno” – sendo difícil escolher a mais produtiva delas. Com Mallarmé e com outro nome que traduziu, Ezra Pound, Pignatari tem o parentesco do experimentalismo e, ao mesmo tempo, do clássico e do gosto pela seleção de autores que possam apresentar uma vertente de discussão. Podemos lembrar os versos de “dp”, de Augusto de Campos: “oswald pound dante / vão compondo / um pouco / o teu perfil cortante / de mallarmé calabrês / que acaso osasco / lançou nos dados / para um lance de três” (Despoesia).

Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos

Não parece haver dúvida de que, dentre tantos caminhos que tomou, Décio Pignatari é mais conhecido como um dos criadores da poesia concreta, ao lado de Augusto e de Haroldo de Campos – uma espécie de concentração da sua multiplicidade. Foi em razão do poema “O lobisomem”, elogiado em 1948 por Sérgio Milliet, que Augusto compareceu numa mesa-redonda sobre o pintor Di Cavalcanti na sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB). Ela era formada, entre outros, por Murilo Mendes e por Décio Pignatari, o “José” do poema ousado – e foi o início da amizade com o poeta que vinha de Osasco para reuniões de poesia em Perdizes. Era possível mesmo se surpreender quando, com tão pouca idade, Pignatari apresentou poemas da qualidade não apenas de “O lobisomem”, mas de “O carrossel”, que constitui seu primeiro livro e abre Poesia pois é poesia: 1950-2000 (o volume que contém sua obra poética), “Périplo de agosto a água e sal” – com suas imagens remetendo a um orientalismo, a Ramsés e mercadores beduínos, aos moldes do Haroldo estreante, em Auto do possesso -, “Rosa d’amigos” e “O jogral e a prostituta negra”. Posteriormente, Pignatari faria poemas mais metalinguísticos, como “Eupoema” ou “Bateau pas ivre”, que remete a Rimbaud, e com viés autobiográfico, a exemplo do belíssimo par de poemas para Lila (sua mulher). Memorável também é o poema “Move-se a brisa ao sol final e no jardim confronta”. A ligação, nesse poema, da claridade do “sol final”, do “sopro do crepúsculo” com as pálpebras liquefeitas, depois que Eni abre o portão e “manchas solares confabulam”, indo embora o verão, e o desenho do cacto como uma “tarde decadente”, com seu “verde amargo”, mostra, além de uma organização notável de versos e o encadeamento quase ininterrupto, como se ele estivesse tomando fôlego para cada verso, um notável domínio da sonoridade e um traço até barroco, pelo qual Haroldo ficaria mais conhecido, em Galáxias e Crisantempo. No poema “brinde em agosto”, dedicado a Décio, aliás, Haroldo escreveria que a poesia do amigo traz uma “fioritura neobarroca (logopaica)” (Entremilênios) – ou seja, um ornamento musical, com a logopeia (“dança das ideias entre as palavras”).

Pignatari foi minando o verso de seus poemas, em “escova” e “ponta de um peso sobre o olho azul”, até se notar uma presença maior de Mallarmé, a partir de 1956, em poemas como “Adieu, Mallaimé (autoportraître)”, “Stèle pour vivre nº 1” e “nº 2”, e se chegar à sua fase plenamente concreta. Para o concretismo, ele teve também grande contribuição: foi ele quem selou contato, em 1955, com o suíço-boliviano Eugen Gomringer, secretário de Max Bill, artista plástico e arquiteto, que havia feito um livro de poemas que chamara de Konstellationen (“Constelações”), em 1953, na Alemanha, numa de suas idas à Europa. Em seu primeiro artigo da teoria, “Arte concreta: objeto e objetivo”, Pignatari destaca a ligação da poesia concreta com a arquitetura, à decoração, aos paisagistas e desenhistas de esquadria. Todas as manifestações visuais, para Pignatari, eram importantes, “desde as inconscientes descobertas na fachada de uma tinturaria popular, ou desde um anúncio luminoso, até a extraordinária sabedoria pictórica de um Volpi, ao poema máximo de Mallarmé ou às maçanetas desenhadas por Max Bill”. Ao mesmo tempo, sugeria, como Eduardo Corona, maior contato entre os arquitetos e as artes visuais, como a pintura e o desenho. Isso porque, para Pignatari, a poesia concreta reunia as mesmas questões espaçotemporais comuns tanto à arquitetura quanto à música eletrônica, além de um ideograma poder funcionar pendurado, na forma de um quadro, na parede.

O “plano-piloto” do movimento trouxe uma síntese das referências: do ideograma de Fenollosa também estudado por Pound, caracterizado em passagens dos Cantos, do Un coup de dés mallarmeano, na ligação com as artes visuais e com a música – pretentendo atingir o “verbivocovisual” -, com Oswald e João Cabral, Cummings e Joyce. Havia nele, a começar pelo nome, uma necessidade de participar da modernização pela qual passava o Brasil, sobretudo com a construção de Brasília (havia o Plano Piloto de Brasília de Lucio Costa, junto com as criações arquitetônicas de Oscar Niemeyer, morto três dias depois de Pignatari), do governo Kubitschek. O poema foi considerado um “objeto útil”, mas Pignatari fala que seria uma moeda de troca, mas só no plano da sensibilidade. Em Contracomunicação, diria: “A poesia concreta está voltada para o consumo, agora. Consumo em massa”. Já estava na verdade nos anos 1960, na visão de Pignatari. Sua visão sobre o real e a poesia é participativa. Em “Construir e expressar” (originalmente o prefácio do livro Fluxograma, de Jorge Medavar), afirma que o poeta é um operário. Mas não o faz metaforicamente, como João Cabral ao comparar o poeta com o engenheiro. Para Pignatari, o poeta deve ser um designer de linguagem, que imprima o poema como uma peça de participação – mas com qualidade. Eis o paradoxo: sendo inútil a poesia, a poesia concreta quis torná-la útil – como um produto. Mas o reflexo volta: o útil é, no fundo, inútil, ainda mais se for uma peça verbal, e Pignatari certamente reconsideraria essas afirmações.

Nessa fase concreta, Pignatari compôs alguns dos poemas mais antológicos, como “beba coca cola”, “terra”, “LIFE” e os sarcásticos “caviar” e “abrir as portas”. Nada, no entanto, que pudesse se restringir a um diálogo com a linguagem publicitária – da qual Pignatari fez parte durante certo tempo. Isso não porque Mallarmé, o “guru” de Pignatari, havia dito que havia poesia em tudo, “menos em cartazes publicitários”, mas porque há uma densidade na poesia com artefatos visuais de Décio que não se encontra numa propaganda – mesmo tendo pontos em comum. Depois disso, pode-se dizer que Pignatari levaria a experiência de Mallarmé quase ao limite, em poemas como “Organismo” (1960), com um zoom cinematográfico, em que os “os” desvelam o corpo feminino e a palavra-título se transforma em “orgasmo”, e “Stèle pour vivre nº 4 Mallarmé vietcong” (1968), no qual usa signos não verbais para descobrir outras palavras no nome do poeta. Sem esquecer os ideogramas verbais – admirador que sempre foi da poesia oriental. Não se prendeu, porém, a uma fórmula de verso ou do não verso, o que o fez seguir, em sua obra poética, caminhos múltiplos, que pareciam inconciliáveis, propondo, porém, o rigor, também a partir das obras daqueles que traduziu. Os poemas que fez pós-concretismo (como movimento) envolvem desde peças icônicas e que satirizam peças publicitárias (como “Disenfórmio”) até um Calendário Philips (com vários poemas servindo de diálogo para fotografias de trabalhadores), também por seu trabalho no meio publicitário, sem abandonar a sonoridade do verso de seus poemas iniciais. A partir da década de 1980, diminuiu sua produção exclusivamente em verso – mas com peças luminosas, como “Augrama para Augusto” e “Valor do poema” – e, nos anos 90, publicou raros poemas, mas interessantíssimos: “Maya”. “Para Ita Rina: uma fotograma”, “Vocogramas” e os catulianos “Poema sonhado” e “Mais dentro” são alguns. Mas nem quando, nesse período, dedicou-se mais à prosa, deixou de fazer poesia, a julgar por O rosto da memória e Panteros (este de influência claramente joyceana, mas ao mesmo tempo original, principalmente no diálogo com imagens, o que se tornou bastante comum em romances experimentais deste início de século).

Os seus textos incluídos na Teoria da poesia concreta anteveem o Pignatari dedicado à semiótica e à publicidade – ele foi criador da marca Lubrax -, ou seja, uma antecipação daquele momento em que ele seria o vice-presidente da Associação Internacional de Semiótica, fundada em 1969. O presidente era ninguém menos do que o linguista Roman Jakobson. À informação de que Jakobson teria dito a Haroldo em 1968 que gostava de “eruditos temperamentais”, Pignatari afirma: “Temperamental, acho que era e sou; scholar, não” (Errâncias). Ele negava a influência de Eco (curiosamente um dos fundadores da Associação), Kristeva e de Barthes, por exemplo, preferindo se concentrar em Peirce (dedicou a ele o poema “Peirce poem”), que considerava renegado pelos europeus, e em algumas ideias de Saussure. Os livros que fez nesse campo – como Semiótica e literatura e Semiótica da arte e da arquitetura -, trazendo todo o corpus de referências de suas teorias e leituras anteriores, são referenciais. Mesmo em livros considerados menores, como Comunicação poética, em que Pignatari explica a poesia fazendo analogias com o futebol, seu pensamento tem um estilo ao mesmo tempo divertido e compromissado em estabelecer com o leitor o entendimento da poesia. Apesar de polêmico e incisivo, havia nele uma preocupação em dialogar com as massas (como em Oswald) – característica de um anti-scholar.

No volume Contracomunicação, ao lado de estudos como “A situação atual da poesia no Brasil” – sobre João Cabral e Drummond em confluência com Mallarmé – e “Marco Zero de Andrade” – uma visão inquieta sobre Oswald de Andrade, com seus versos que não são versos -, ele coloca textos do Terceiro Tempo, sua coluna dedicada a futebol, na qual trata de Pelé, Garrincha, Rivelino e Ademir da Guia, entre outros, além de análises sobre os meios de comunicação e Marshall McLuhan (que traduziu), tentando estabelecer uma correspondência deles com o meio poético, não exatamente o literário, pois essa demarcação não existia em Pignatari. Para ele, os textos mais incisivos e os jogadores de futebol proporcionavam um estudo concentrado em signos. Dizia ele em 1969: “[…] entramos na era semiótica, ou na era da linguagem intersemiótica. A obra reverteu à vida. É necessário repensar, recriar tanto uma coisa como outra, isto é, tanto os signos como a vida. O computador é o grande instrumento para esse tipo de indagações” (Contracomunicação). Por isso, Pignatari não se considerava um scholar, no sentido de que não se dedicou especificamente a uma área de estudos: a semiótica lhe abriu vários e diversos.

Nos textos “autobiográficos” de Errâncias, Pignatari novamente mostra sua verve para diversos campos artísticos, como em sua teoria. Ele trata de sua relação com inúmeros artistas, escritores, pintores (como Volpi e Tarsila), músicos (Luigi Nono, Rogério Duprat), e com esportistas (como o boxeador Paulo de Jesus). Esse “autobiográficos” vai entre aspas porque justamente não se apresenta como uma espécie de autobiografia, mas sim flashes de sua vida, fragmentos de memória, escritos num tom conscientemente poético, às vezes até barroco. São “Quase depoimentos, memórias, reflexões”, diz no prefácio, remetendo a “nada ou quase uma arte” do prefácio de Um lance de dados.

Ao mesmo tempo em que empregou sua obra poética e semioticista, Pignatari traduziu alguns dos maiores nomes da literatura, alguns relegados à poeira das estantes. Apesar de não ter feito uma teoria da tradução, como Haroldo de Campos, ou feito ou enorme número de traduções-arte, como Augusto, Décio deixou alguns livros antológicos nesse campo: Retrato do amor quando jovem, por exemplo, liga Vita nova, de Dante Alighieri – numa tradução exemplar – com Romeu e Julieta, de Shakespeare, por exemplo. E em 31 poetas, 214 poemas, sem a menor vontade de ser claramente estruturado, mas ricamente disperso, temos poetas de todos os continentes e estilos, indo do Rigveda, Safo, Li T’ai Po até Guillaume Apollinaire, Byron e Heinrich Heine (em traduções que ajudariam a inspirar a existência de Heine, hein?, de André Vallias, dedicado a Pignatari). E no seu livro de traduções de Marina Tsvietáieva – em que assume “lastimável ignorância do idioma russo”, tendo tido aulas para poder fazer suas versões – recebemos seu melhor testamento neste sentido. Seu prefácio, contando parte da história da tradução no Brasil, é um capítulo à parte de sua trajetória. Nele, concentram-se todos os Pignataris: leve, denso e pretensiosamente divertido, sem nenhuma preocupação em fazer escola. Dezenas de ensaios acadêmicos sobre a tradução não conseguem se equivaler a este estudo, que anuncia Tsvietáieva, a poeta russa que teve um terrível destino. No livro Poesia pois é poesia, suas seções de Traduções dialogam com as Transluminuras de Haroldo e os Intraduções de Augusto. Nelas, Pignatari abre espaço para Shakespeare, Robert Browning, François Villon, Wallace Stevens, Emily Dickinson, Baudelaire, Apollinaire, entre outros (sem aqui nenhum desmerecimento). Pignatari estava ao lado desses poetas “à margem da margem” – expressão usada em “Noção de pátria”, que deu nome a um volume de ensaios de Augusto – e, portanto, não se incomodou em ficar longe da cena. E, no momento em que sua obra parece adquirir um sentido de fechamento, quando, na verdade, está se disseminando, podemos voltar a versos luminosos de outro poema, feito em 1951:

– Este senhor-menino, que habita no meu paço
entre arcos que exala um sonho e outro, é um sonho
primordial do olvido em recordar-me.

* André Dick (Porto Alegre, 1976) é Doutor em Literatura Comparada pela UFRGS. Com a poeta Nicole Cristofalo, edita o blog Dado Acaso. Escreveu os livros Grafias (IEL, 2002), Papéis de parede (7Letras; Funalfa Edições, 2004) e Calendário (Oficina Raquel, 2010). Também realizou o livro de traduções Poesias de Mallarmé (Lumme Editor, 2011).

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