O mundo do trabalho inspirou desde sempre filmes extraordinários. A partir de hoje (6 de setembro), o Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro vai exibir uma dúzia deles na mostra “O cinema em busca de emprego”.
Em meio a clássicos obrigatórios, mas bastante reprisados, como Tempos modernos (Charles Chaplin, 1936) e Ladrões de bicicletas (Vittorio de Sica, 1948), a programação inclui algumas raridades, como o argentino Bolívia (2001), de Israel Adrián Caetano, e o quase esquecido O emprego (1961), de Ermanno Olmi, que o IMS está lançando em DVD.
http://www.youtube.com/watch?v=iYJwm4DlKU0
O filme de Olmi, ausente há décadas das telas brasileiras, é nada menos que uma obra-prima. Já se disse que ele é uma espécie de continuação natural de Ladrões de bicicleta, como se a desafortunada família romana apresentada por De Sica tivesse subido na vida com a reconstrução do país e agora vivesse num conjunto habitacional proletário (um upgrade em relação ao cortiço anterior) numa cidade-satélite de Milão.
Fundo histórico e drama pessoal
O protagonista é Domenico Cantoni (Sandro Panseri), um rapaz de 17 anos que faz testes numa grande corporação milanesa em busca do que seu pai chama de un posto sicuro per tutta la vita. O dia das provas para a conquista do emprego, que incluem questionário, redação e um impagável “exame psicotécnico” (fetiche modernoso da época), ocupa metade do filme. É nesse dia que Domenico conhece outra garota postulante a um posto sicuro na empresa, Antonietta Masetti (Loredana Detto), e nasce entre os dois um esboço de namoro.
A partir dessa situação Olmi constrói uma narrativa que combina observação social, sátira de costumes, romance de formação e história de amor. Filmando num límpido preto e branco e tirando partido da profundidade de campo e de movimentos precisos de câmera, o diretor, como quem não quer nada, dá a ver simultaneamente o fundo histórico (a modernização de Milão e da Itália, a forte emergência da sociedade de consumo à americana, as discrepâncias sociais e culturais do país) e o drama existencial (as aspirações e angústias juvenis, a escassez de sentido do dia a dia, a melancolia da velhice e da solidão). Aqui, uma descrição do trabalho maçante numa repartição, com um humor silencioso e um sentido do absurdo que lembram Jacques Tati:
http://www.youtube.com/watch?v=Z9NQpdx_9L4
Boa parte da observação da vida urbana se dá pelos olhos do ingênuo Domenico, o que lhe confere ares de “descoberta do mundo”. Daí vem muito do frescor do filme, que alguns aproximam da Nouvelle Vague, com seus jovens errando alegremente pelas ruas da metrópole, inventando a vida.
Algumas cenas são absolutamente memoráveis, como aquela em que, ao final do dia de testes e do passeio com Antonietta, Domenico entra num vagão vazio e canta solitário uma balada romântica, sem se dar conta de que o carro estava desatrelado do trem que parte para o subúrbio. Em outro momento, quando morre um opaco funcionário burocrático da firma e as gavetas de sua mesa são esvaziadas, descobrimos que ele escrevia em segredo um caudaloso romance.
Poética do espaço
É notável o modo como Olmi preserva a plataforma básica do neorrealismo (a filmagem nas ruas, o registro direto da vida social, a utilização de atores não profissionais) mas a enriquece, por um lado, com um humor sensível ao absurdo do cotidiano e, por outro, com uma refinada poética do espaço que lembra Antonioni. Aqui, os planos gerais com foco profundo cumprem um papel dramático essencial. As largas avenidas e os canteiros de obras de Milão, bem como os grandes ambientes com pés-direitos altíssimos e longos corredores, são espaços alternadamente ameaçadores, intrigantes ou opressivos. Combina-se com tudo isso um lirismo pungente, digno dos melhores filmes de Valerio Zurlini.
Em suma, não é pouca coisa esse trabalho de Olmi, que tem dois outros títulos na mostra do IMS: A árvore dos tamancos (1978) e A lenda do santo beberrão (1988). Para concluir, duas curiosidades sobre O emprego. O crítico e roteirista Tullio Kezich, biógrafo de Fellini, faz no filme o papel do psicólogo que aplica o temido “psicotécnico”. E a atriz Loredana Detto, então com 15 anos, se casaria dois anos depois com Olmi, com quem vive até hoje.
Cigarra e formiga
Se nos filmes da mostra do IMS, de A nós a liberdade (René Clair, 1931) a O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1981), passando por A classe operária vai ao paraíso (Elio Petri, 1971), prevalece a ideia do trabalho alienado, embrutecedor do homem, em Esse amor que nos consome, que entra discretamente em cartaz hoje nos cinemas, não há divórcio entre trabalho e prazer, labuta e criação – cigarra e formiga finalmente conciliadas.
http://www.youtube.com/watch?v=_fu2KmEIAL4
O filme de Allan Ribeiro é um misto de documentário e ficção centrado no dia a dia de Rubens Barbot, que em 1990 criou no Rio a primeira companhia negra de dança contemporânea, e Gatto Larsen, seu parceiro artístico e amoroso.
Do velho casarão ameaçado de despejo que lhes serve de moradia, ateliê, salão de dança e centro cultural, os dois e sua trupe espalham afeto e arte pela cidade. A câmera registra as andanças pelas ruas e praças, o trabalho artesanal na fabricação de roupas e adereços, as performances de dança em lugares como um cais semiabandonado, a luta diária pela sobrevivência material e espiritual. Um filme belíssimo, se o espectador se deixar levar pela mão nessa aventura de descoberta e entrega.
Mais Ermanno Olmi
Uma vida sem sonhos e sem ambições, por Mariarosaria Fabris – “O emprego mostra toda a esqualidez de uma vida condicionada por uma rotina metódica e repetitiva”.
Esquecer para lembrar, por José Carlos Avellar – Olmi “procura esquecer tudo o que sabe para reaprender a ver o mundo a partir do gesto do dia a dia das pessoas comuns”.