Cineasta, curador e gestor público, José Carlos Avellar é lembrado pelos amigos e pelos profissionais da área como o crítico de olhar sempre agudo e generoso sobre o cinema. Um crítico que fez história não apenas no Brasil, onde publicou diversos livros sobre a produção cinematográfica nacional e latino-americana, como também no exterior, tendo participado de festivais importantes como Veneza, Cannes e Berlim. Pelo imenso e brilhante legado que deixou para o cinema, Avellar, que morreu em março de 2016, aos 79 anos, será homenageado mais uma vez no sábado, dia 8, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, onde trabalhava como coordenador de cinema desde 2008, além de escrever para o site e outras publicações da instituição. A partir deste dia, o espaço de cinema do IMS-RJ passará a se chamar Sala José Carlos Avellar.
A homenagem será feita também pelo Festival do Rio, e acontecerá às 18h, logo após a exibição de Ganga Bruta, de Humberto Mauro, um dos filmes da programação do evento (que seguirá até dia 16). Participarão da homenagem Ilda Santiago, diretora do Festival, e os críticos alemães Wieland Speck (curador da mostra Panorama, do Festival de Berlim) e Klaus Eder, entre outros nomes. No mesmo dia será lançado o livro Pai país, mãe pátria, um ensaio de fôlego sobre a representação da família no cinema brasileiro recente, escrito por Avellar e editado postumamente pelo IMS.
A seguir, um trecho de Pai país, mãe pátria, no qual o crítico parte de cenas e diálogos extraídos de alguns dos principais filmes nacionais, principalmente aqueles produzidos a partir de meados dos anos 1990 – Mutum, de Sandra Kogut; Central do Brasil, de Walter Salles; A ostra e o vento, de Walter Lima Jr.; e Dois filhos de Francisco, de Breno Silveira, são alguns deles – para analisar, com precisão, os dramas de toda a sociedade incorporados em alguns personagens destas obras.
Capítulo 22 de Pai país, mãe pátria, de José Carlos Avellar
“Nossa, mãe, que claridade!” Tiago ajeita os óculos com a ponta dos dedos. Bota, tira e bota de novo as lentes diante dos olhos e ri de contente com o que vê, o sorriso da mãe “fica maior”. Maior ao ver o filho com os óculos do moço da cidade. Parte da cena é o que nela se vê. Parte, o que nela se representa. Tão importante quanto perceber os dois planos pelo que significam na narrativa em que estão inseridos, é percebê-los como uma imagem da estrutura que organiza a narração. Mais exatamente, é percebê-los como produtos e produtores da estrutura narrativa de Mutum (Sandra Kogut, 2007).
O filme começa a contar aqui a despedida do menino Tiago da vida no campo. Primeiro, as árvores, as galinhas ciscando ali perto, o céu distante lá longe, nuvens, quietude e silêncio. No segundo dos cinco planos que nos contam a despedida, a mãe – o olhar perdido ao longe. O filho entra em quadro perguntando pelo homem que passava de visita. Depois da resposta, “Foi caçar lá na vereda grande, mas antes de ir pra cidade ele volta”, uma conversa, mãe e filho, jeito triste, voz doce e sussurrada, lágrima escondida no fundo dos olhos. “Tiago”, ela chama, “o moço disse que, se você quiser, ele te leva junto com ele”. Em primeiro plano o rosto de Tiago, parado, em silêncio. Ele sai de quadro. Voltamos ao rosto da mãe. Ela também sai do plano. Um instante vazio, como uma reticência antes de nova palavra. Então, imagem mais longa, a conversa prossegue, marcada por reticências. Mãe e filho de cabeça baixa, arriscando vez por outra uma troca de olhares. O menino não diz nada, a mãe é só meia-voz. “O moço é compadre de seu Aristeu”, diz. “Lá na cidade ele te compra óculos”. E diz mais, “te põe na escola”. E ainda, “depois, você aprende um trabalho”. Faz força para esconder o choro, abraça o filho, “você quer ir?”, e insiste: “Vai filho. Se der, no fim do ano a gente faz uma viagem também. Um dia todo mundo se encontra”.
Na imagem fechada no rosto da mãe e do filho a gente vê quase só o silêncio de Tiago, silêncio que se estica pelos planos seguintes, o menino brincando na terra e o aberto do campo, antes da preparação para a cidade. “Você quer levar o chinelinho do Felipe? Ele serve em você. Quer?”. Na hora da partida, uma pergunta para a mãe: a cidade, “é pro mar ou para o lado do tabuleiro branco? É longe?”. E outra para o moço da cidade, apontando para os óculos: “Posso?”. E então, no menino míope, um último sorriso (ou o primeiro?) de quem vê pela primeira vez (ou a última?) as gentes e as coisas da fazenda.
Em cena, a mãe vista pelos olhos do filho. Graças aos óculos emprestados, ele vê pela primeira vez a mãe que via sem ver direito todos os dias. O pequeno míope vive, então, uma experiência semelhante à de uma primeira ida ao cinema. A alegria de Tiago com os óculos emprestados pelo viajante não é apenas o que o espectador vê como se fosse o personagem de olhos bem abertos para o brilho das cores e o tamanho das formas através das lentes. É também uma representação da descoberta do cinema, um modo de dizer que um filme é como os óculos que abrem a visão de Tiago. É ainda, talvez, uma delicada figura da relação do país com o filho: um modo de se perguntar se o que a mãe diz ao filho, que ele deve ir para a escola da cidade e para os óculos, não é o que a mãe pátria diz a seu filho sempre que o pai não está.
Mutum é uma soma de detalhes colados um depois do outro como anotações soltas: no quintal, o vento forte derruba tudo; depois da chuva, as crianças brincam na lama; na roça, o trabalho de capinar com o pai; na porta da cozinha, um riso solto e aberto; no céu azul, uma nuvem branca perdida; na gaiola, os passarinhos tomam um banho de chuveiro; no rosto de Tiago, a tristeza pela doença do irmão. As imagens não se articulam por uma qualquer relação de causa e efeito. Soltas, independentes umas das outras, estão unidas pela comum preocupação de ver o mundo do ponto de vista de uma criança duas vezes míope. Tiago é míope porque seus olhos não veem em foco e porque a presença bruta do pai não deixa perceber o que se passa no mundo dos adultos. O mundo do pai, da mãe e do tio está permanentemente fora de foco. O pai briga com a mãe por trás da porta fechada. O tio lhe dá uma carta para entregar em segredo, sem ler.
Quando finalmente o mundo se descobre, graças aos óculos (tudo fica maior, e, em torno da mãe, quanta claridade!), nenhum efeito especial – apenas foco e boa luz, apenas um instante em que um plano responde em direta continuidade ao que veio antes dele: corte do rosto do filho para o da mãe quase nem se nota – a ação parece ocorrer numa imagem contínua. Para destacar os óculos no rosto de Tiago, um plano aberto e de maior profundidade de foco, claro e nítido até onde a vista alcança. É o suficiente para que se possa sentir (muito provavelmente sem ter consciência disso) que até então, desde a primeira imagem (o foco preciso no detalhe da crina do cavalo que leva Tiago de volta para casa), o filme nos convida a ver como um míope – para não perder Tiago de vista, para continuar com os olhos nele mesmo quando ele não se encontra em cena.
Mais do que não tirar os olhos de Tiago, trata-se de ver a história pelos olhos de Tiago. A miopia aqui é a ficção: vemos o menino de perto, perdemos os adultos de foco. Esse olhar limitado por uma aparente miopia, (para o espectador, um olhar ilimitado exatamente pela miopia), contribui para a compreensão de como a realidade se apresenta para o filho quando o pai não está ou está como força bruta. A câmera míope é também um modo de sugerir que, na relação entre pais e filhos, o país está fora de foco; a mãe, cercada de claridade.
Em Juízo e em Jogo de cena o documentário incorpora procedimentos de ficção. Em Mutum, o caminho inverso. A ficção incorpora procedimentos do documentário. Na origem, um texto de Guimarães Rosa. Para transformar o texto em filme, muitas viagens pelo sertão e quatro ou cinco versões de roteiro (de Sandra Kogut, com a colaboração de Ana Luiza Martins Costa), mas, a rigor, a filmagem não seguiu o escrito ao pé da letra. Mutum não poderia existir sem o roteiro, mas não é uma reprodução objetiva dele. Está mais próximo de uma refilmagem do filme projetado no imaginário da realizadora e anotado no papel – processo nem tão raro na invenção cinematográfica: muitos filmes são efetivamente uma refilmagem do previamente visto pelo realizador. Com algum exagero, é possível dizer que Sandra escreveu um filme não para filmá-lo tal como anotado, mas sim tal como ficou guardado na memória ao longo da preparação do roteiro. Temos aqui, talvez, uma pequena semelhança com o processo de criação literária de Guimarães Rosa. Uma adaptação mais fiel ao escritor que ao texto, mais preocupada em conversar com o modo de Rosa se relacionar com o sertão, as pessoas e as palavras. Para Sandra, Mutum “não é exatamente uma adaptação. Acho que é mais uma conversa com o livro”. Essa mais-conversa-que-adaptação levou à decisão de não mostrar o roteiro a ninguém, nem aos intérpretes nem à equipe técnica, “tudo foi transmitido oralmente. Levou também à decisão de adotar na filmagem um certo quê de cinema documentário. Intérpretes não profissionais, gente da região – “as crianças e os vaqueiros nunca haviam ido a um cinema” – foram convidados a viver a história com seus nomes verdadeiros, e não com os nomes dos personagens de Guimarães Rosa. “O trabalho dos intérpretes construiu-se a partir da proximidade entre a vida deles e a de seus personagens”, em improvisações estimuladas pela diretora. Reunidos numa fazenda não muito diferente e nada distante do espaço em que viviam, esses intérpretes espontâneos se deixaram filmar (quase exatamente) assim como são.
A ficção – para se realizar com ficção e não para fingir que é outra coisa – estimulou algo entre a improvisação e a reconstituição. A câmera, parece, lembrou-se da recomendação feita certa vez por Joaquim Pedro a Paulo José, e pediu o mesmo a seus não intérpretes: não interpretem. A ficção de Mutum documenta a rotina de uma fazenda que continuou funcionando durante as filmagens, “cuidavam dos bichos, capinavam, trabalhavam juntos, com as roupas deles, e brincavam com os brinquedos deles também”. Funcionando durante as filmagens e, numa certa medida pelo menos, funcionando também para as filmagens.
O Tiago do filme é em parte o protagonista da história de Guimarães Rosa e em parte ele mesmo, Tiago da Silva Mariz, menino de dez anos que não sabia o que era cinema nem ouvira falar do escritor. Na tela, vemos Tiago e seu eu-outro, o intérprete espontâneo que existe nele. Da fusão do eu e do eu-outro de Tiago nasce o personagem do filme. Esse desejo de manter a ficção presa ao documental não resulta de uma preocupação de cunho etnográfico, mas de um processo de construção de personagens inspirado pelo escritor, esclarece Sandra. Para ela, os livros de Guimarães Rosa “documentam” detalhes da natureza e da vida no sertão através da ficção: “o texto não é descritivo, tudo ali fala do mundo interno dos personagens, as paisagens do livro são, para mim, paisagens interiores”.
Em Mutum, um plano visto isoladamente parece documentário, cena que incorpora o gesto real de uma pessoa real. Mas essa “imagem mais crua e simples” está de fato a serviço da ficção. Trata-se de espontaneidade cuidadosamente construída fora de quadro para “manter as relações entre os personagens sempre em primeiro plano: a mãe consolava Tiago quando ele levava uma bronca, mesmo quando eu não a filmava”. Portanto, espontaneidade trabalhada fora de quadro para que os intérpretes “não se sentissem dominados pelo dispositivo do cinema”. Imaginemos que Mutum procure o documentário assim como Juízo e Jogo de cena procuraram a ficção. Imaginemos que a ficção procure seu eu-outro, o documentário, para esquecer o dispositivo do cinema, para reinventar o dispositivo do cinema, para reinventar a cena. O importante era “jamais esquecer que estávamos fazendo um filme”. Cinema, conclui Sandra, documentário ou ficção, “é sempre uma questão de mise-en-scène. A única realidade que existe num filme é a realidade interna de um filme”.
Desse modo, na realidade interna de Mutum, lágrima escondida no fundo do olho, a mãe pátria diz para o filho que ele deve ir embora. Se der, no fim do ano ela viaja também. Um dia todo mundo se encontra.