Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, o primeiro livro da filósofa norte-americana Judith Butler traduzido no Brasil, marcou época. Lançado nos EUA em 1990 como uma compilação de trabalhos que vinham sendo desenvolvidos pela autora desde o final dos anos 1980, teve sua primeira edição brasileira em 2003, quando o questionamento dos pressupostos até então estabelecidos na teoria feminista foram postos em questão por Butler. Tratava-se principalmente de pensar como fazer um feminismo que não tivesse apenas as mulheres como sujeito da emancipação, ao mesmo tempo desconstruindo a categoria mulher e ampliando a política feminista para toda forma de subalternidade.
A filósofa Judith Butler
Durante mais de 10 anos, Problemas de gênero foi o único título em português da autora que desembarca no Brasil no começo de setembro para participar de um congresso acadêmico (Desfazendo gênero, UFBA), de um seminário aberto ao público promovido pela revista Cult, e encontrará um campo fértil de leitura de sua obra no Brasil. Infelizmente, sob o monopólio da leitura de Problemas de Gênero, que – felizmente, depois de anos esgotado – ganha sua oitava edição pela Civilização Brasileira. Com visual repaginado e capa com foto da Divine, a drag queen icônica cuja imagem, embora reforce a ideia de gênero como performance, também dá a ideia do quanto Problemas de gênero é transgressor. O título volta às livrarias ao lado de Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto, pela mesma editora, e pode vir a ampliar a leitura de Butler em outras áreas, como a filosofia política, a comunicação ou os estudos de imagem.
Quadros de guerra reúne um conjunto de textos voltados para o debate sobre a guerra EUA x Iraque, a tortura dos prisioneiros da prisão de Guantánamo, e tem como pano de fundo o debate sobre que vidas têm o direito a serem reconhecidas – e portanto são passíveis de luto – e que vidas podem ser descartadas. Sua atualidade no Brasil pode ser constatada todos os dias nas páginas do noticiário, onde se pode ler a diferença entre vidas que são passíveis de luto e as que não são. Butler se ocupa tanto do enquadramento da cobertura de guerra quanto do uso da fotografia, retomando os argumentos de Susan Sontag em “Diante da dor dos outros”. É nesse contexto que a autora discute a condição de reconhecimento do homossexual, a tortura como política de estado, e a biopolítica como uma forma engenhosa de controle de corpos submetidos aos mais diversos tipos de poder.
Quadros de guerra também contribui para incluir o debate sobre identidade de gênero em um contexto político mais amplo e para desfazer a ideia de que os estudos de gênero são um campo secundário na epistemologia em geral, e na filosofia, em particular. Políticas editoriais de tradução – ou a falta delas – influenciam a recepção da obra dos pensadores estrangeiros no Brasil. De uma bibliografia de mais de 12 títulos individuais publicados, Butler tem apenas três títulos em edição brasileira (o terceiro é O clamor de Antígona, lançado ano passado pela Edusc). Anos de monopólio de Problemas de gênero em português pode ter criado a falsa impressão de que Butler é uma autora exclusivamente interessada em valorizar a performatividade da drag queen como questionamento da normatividade de gênero, abordagem hegemônica nos estudos sobre sexualidade.
Equívoco que se justifica pelo fato de que a recepção de seu pensamento na área acadêmica tem se dado com as reverências de praxe, sinal da nossa subserviência colonial ao saber que vem de fora, capaz de transformar em cânone até mesmo autoras que surgiram para contestar o cânone. Suas leitoras críticas – como Beatriz Preciado e Gloria Anzaldúa – ficam à margem do debate, sintoma de que na cultura acadêmica brasileira é de mau gosto discordar. Perde-se, assim, a dimensão política mais ampla do pensamento da autora e de certa forma se reduz os problemas de gênero à afirmação de novas identidades.
A vinda de Butler ao Brasil pode ser uma chance de desfazer alguns desses equívocos, como o de reduzir seu pensamento à crítica ao binarismo de gênero, sem tomar como político os termos em que a questão se coloca. Seu debate em torno do tema da identidade de gênero é atravessado pelas condições de ser reconhecido enquanto sujeito político – não apenas dentro do binarismo masculino/feminino, mas em todas as possibilidades de identificação de gênero que não estejam atreladas ao corpo biológico, questão candente diante do imenso número de cirurgias de mudança de sexo, da medicalização da sexualidade e da recente adoção, no DSM V, da disforia de gênero como doença mental.
Desde sua tese de doutorado, Subjects of desire – Hegelian Reflections in Twentieth-Century France, editada em 1987, Butler trabalha com os temas políticos da filosofia francesa da segunda metade do século XX, especialmente os apontados por Michel Foucault e Jacques Derrida. Direito à diferença, reconhecimento, construção de subjetividades e desconstrução da identidade são alguns dos pontos de contato entre a autora e o pós-estruturalismo francês, a partir dos quais ela aborda o tema do gênero, mas não apenas. Nesse sentido, a vinda de Butler pode servir para que se reconheça que fazer política é tomar como político os próprios termos em que se estabelece o que é objeto da política.