Três belíssimos filmes estão entrando em cartaz nas principais capitais: o japonês O segredo das águas, de Naomi Kawase, o russo Leviatã, de Andrey Zvyagintsev, e o brasileiro Depois da chuva, de Claudio Marques e Marília Hughes. Falei sobre o primeiro aqui quando foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo. Vamos, portanto, aos outros dois.
Densidade humana, rigor formal
O melhor cinema russo tem uma densidade humana e política – sem falar no rigor formal – difícil de encontrar em outras cinematografias. Leviatã é um legítimo representante dessa estirpe. Resumindo grosseiramente, é a história do embate entre o mecânico Kolya (Aleksey Serebryakov) e o prefeito corrupto (Roman Madyanov) de uma cidade litorânea do norte da Rússia, que quer tomar sua casa para construir no lugar um empreendimento turístico.
Mas esse esboço dramático se complica enormemente com a entrada em cena de outros personagens: o advogado Dmitriy (Vladimir Vdovichenkov), amigo de juventude de Kolya, que vem de Moscou para defender sua causa; a jovem Lilya (Elena Lyadova), atual mulher do mecânico; o filho adolescente (Sergey Pokhodaev) do primeiro casamento de Kolya.
Uma teia de atritos, ciúmes e ressentimentos vai se formando sobre o pano de fundo do confronto central, minando as forças de Kolya contra uma estrutura injusta e corrompida.
O que torna Leviatã um filme único e precioso, porém, não é sua mera trama, mas a maneira como Zvyagintsev a apresenta ao espectador, mantendo do início ao fim uma tensão quase insuportável, por força de suas elipses precisas e do uso arguto do extracampo. Um exemplo eloquente é a sequência em que Kolya vai com a mulher e o filho a um piquenique de tiro ao alvo junto com amigos policiais e suas famílias. A certa altura acontece uma cena de adultério, um entrevero, uma saraivada de tiros. Só que tudo isso se passa fora do quadro, sem que saibamos o que aconteceu. Só aos poucos, ao longo de várias sequências, juntamos os cacos e montamos uma interpretação. Também o acontecimento mais traumático e crucial do filme permanece obscuro: suicídio, assassinato ou acidente?
Do cósmico ao político
Essa dubiedade deliberada contrasta com a clareza com que se retrata a estrutura de opressão e corrupção da Rússia atual, em que tudo – o Judiciário, a polícia, a burocracia estatal – parece dominado pela tríade do poder político, econômico e religioso, cuja união é celebrada justamente numa missa ortodoxa.
Leviatã começa (e termina) no mar, nas ondas que batem violentamente nos rochedos de um litoral desolado. Aos poucos surgem restos de navios naufragados e umas vagas ruínas à beira-mar. Só depois vem a presença humana e centra-se o foco em Kolya. Esse trânsito do natural para o histórico-social, e daí para o individual, perpassa todo o filme. Nunca se perde de vista qualquer dessas três dimensões. A psicologia, a ética, a política, a metafísica – está tudo misturado, como costuma acontecer nas grandes obras de arte.
Depois da chuva
Muitos cineastas brasileiros, dos mais jovens aos mais veteranos, debruçaram-se sobre o período da ditadura militar e da resistência a ela. A primeira originalidade de Depois da chuva é abordar o período que veio logo em seguida: o movimento das Diretas, a eleição indireta de Tancredo, a agonia e morte do presidente eleito.
Mas o interessante é que esse período nacional de esperança e frustração é visto pelos olhos de um adolescente baiano de classe média, Caio (Pedro Maia), muito mais identificado com uma comunidade anarquista que mantém uma rádio pirata num casarão abandonado do que com seus colegas de escola. Entre estes, a exceção é a encantadora Fernanda (Sophia Corral), rebelde e inquieta como ele.
Desse modo, Marilia Hughes e Cláudio Marques fundem engenhosamente o quadro histórico e o romance de formação. Uma espécie de A educação sentimental em escala menor.
Espírito de época
São muitos os acertos e virtudes do filme: a definição dramática muito clara dos espaços (o casarão anarquista, o colégio, a casa de Caio, a usina abandonada onde acontece uma rave libertária), a captação de um “espírito de época” (com a ajuda do punk rock e da vanguarda paulista, devidamente canibalizados pelos baianos), a recusa em mostrar uma Salvador pitoresca ou folclórica e, sobretudo, a aposta corajosa nos jovens protagonistas.
A chamada “química” entre Pedro e Sophia produz momentos sublimes, como aquele em que os dois estão num píer abandonado, falando sobre Salvador, e ela de repente diz que está com calor e se joga no mar, de roupa e tudo. Ele tem um instante de perplexidade e depois salta atrás dela. Ali estava uma garota por quem valia a pena ir até o fim do mundo. Poucas vezes o amor adolescente se tornou tão visível na tela.