Rita:
Se essa correspondência não fosse pública, eu diria: “rebarbativo Gullar”, uma ova! E pronto. Resposta abrupta assim porque a amizade tão profunda e sentida, de mais de 30 anos, que temos um pelo outro sempre permitiu os “contrastes e confrontos”, explicitamente declarados e debatidos, sem que isso a afetasse. Mas como escrevemos a céu aberto, ao ar livre como dois BBs no paredão virtual e eletrônico, com gente lendo por cima dos nossos ombros, devo uma declaração a essa galera anônima que bafeja nas nossas nucas: desde os meus 16 anos “pratico” Ferreira Gullar. No longínquo ano de 1956, copiei seu livro A luta corporal à mão (naquela época não havia os recursos de hoje), com espanto e alumbramento. Foi formidável ter a sensação de que era eu quem escrevia aquele livro-bomba! Ainda não conhecia “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Borges. Sem saber fui um Menard II. Anos mais tarde escrevi um texto sobre as minhas influências em poesia; saiu na Folha com o título de “Três Mosqueteiros”: Bandeira, Drummond, Cabral. Quem era o quarto? Quem era D’ Artagnan? Gullar, é claro. Ele tem até o physique du rôle para o personagem.
Durante toda a minha vida, da adolescência à velhice, o admirei por sua integridade combatente e pelos seus livros. A possibilidade que ele abriu, desde 1954, com A luta corporal, para os poetas moços começarem a escrever, foi vital e inesquecível. O livro Em alguma parte alguma, lançado ano passado é fundamental, como sua obra é fundamental para poesia brasileira de hoje e de sempre. Como deixei claro na minha carta anterior, que antecede a sua, a sucessão “monárquica” que se faz com os poetas não me agrada nem um pouco nem me motiva. Afinal, quem não sabe ainda que os bons poetas não morrem nunca? Que eles são contra a morte? Ou o seu antídoto infalível?
Você me dá razão numa coisa que eu não afirmei. Eu, apenas, perguntei se é mais fácil para o júri do Prêmio São Paulo julgar prosa do que poesia, e a razão disso, e o porquê da exclusão da poesia nessa premiação. De minha parte, eu não acho que seja mais difícil julgar poesia do que prosa. Como poderia achar isso, sendo poeta? Para mim seria mais difícil julgar os volumosos volumes da prosa. Mais trabalhoso, sem dúvida. Também não acho que seja mais difícil julgar a boa poesia. Muito pelo contrário, a sinto de longe, instantaneamente, pelo cheiro. Ando, isso sim, aborrecido de ver a poesia ser cantada em prosa e verso, às vezes até melodramaticamente, da boca para fora, e não ter o status da prosa. Na hora de premiar o poeta, com 200 milhas no caso, nem um centavo. E nem a possibilidade de concorrer! Só posso encontrar uma razão extraliterária, miserável, de mercado: a poesia não vende, a prosa pode vender alguns caraminguás.
Sim, só temos “um corpo e uma fatia do tempo”. A melhor maneira que tenho para lhe responder isso é a de citar três poemas. O primeiro é de 1960, que está no meu primeiro livro Palavra, de 1963, se chama “Corpo”, e diz assim:
Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?
Doce máquina
com engrenagem de músculo
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão).
Engenho de febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.
O outro, escrito em 1991, e publicado em 94 em Números anônimos, é sobre a sensação que tive ao ouvir os primeiros sinais de vida do meu filho Carlos:
Você é todo coração, extremo.
Ultrassonográfico e estremecido
a 155 p/minuto
e daqui para frente, bate até o fim.
No início, indiviso, profissional
somente por si mesmo
sem tempo de devaneio
no meio da estática, da tempestade
do outro corpo
que o guarda agora, coeso
e que depois o expulsará
quando você quiser fugir.
E o terceiro, publicado em Raro mar, em 2006, tenta mostrar a estranha mistura de vida e suicídio, ou do suicídio inerente à vida :
O relógio é a bomba que o desejo
dos pais deram corda desde
o primeiro batimento, ainda
sob o deles, sotoposto, soterrado.
Depois, paulatino e discernível
desgarrando-se, embora
sempre dependente daquela
ligação original, orgânica.
Agora, a corda encurta na mão
de quem a segura, no pulso do corpo
sem o calço do desejo expresso
na contagem da estrofe inicial.
Mas que continua, puro impulso
cabo-de-guerra, vida e morte
que vai puxar até partir, em cima
do que pode ser mina ou fonte.
Para dizer a verdade, creio que tenho o mesmo tempo que todo mundo tem para escrever. Não escrevo a partir da contemplação. Escrevo no meio da casa em funcionamento, no meio da rua, e, antes de me aposentar, no meio do trabalho, no meio do pão de cada dia. O que posso ter é um maior investimento interior que cria um tempo extraordinário, um espaço, onde só cabe a mão do escritor, assim:
CINQUENTA E TANTOS ANOS
Escrevo porque escrevo.
Quando dei por mim, escrevia.
Escrever não tem começo nem fim.
Me mantenho escrevendo.
Luto contra meu corpo desde o início.
Me tenho, escrevendo.
No teclado, ou com a caneta, o lápis.
Mas devido à rapidez
com que penso e esqueço
devia usar a pena de dois séculos atrás
que casa melhor com o gesto incisivo
que imagino, preciso
com sua penugem de asa, com o bico
de um pássaro agudo qualquer, de rapina
mergulhando, veloz e voraz, repetidamente
no gargalo, na garganta do tinteiro
para pegar, pescar, a voz úmida, submersa
contínua e escura, que não pode secar.
Ou assim:
Corpo feito no grito. De um grito.
Por um grito. Pelo grito úmido
e escuro, configura-se na emissão
e na escuta: no circuito de si mesmo.
Na escrita. Por um feixe de gritos
amarrados tão juntos que parecem ser
a soma certa e alta de um só – sumo.
Corpo de porquês. Que levanta
da cadeira, do pensamento
e vai pegar o que se diz em pé:
(senão o sentido escapa pelos
sentidos afora), e vai buscar
sem garantia de receber ou de sequer
encontrar o que pensou existir
para anotar logo em pedaço de papel
beira de jornal, no canhoto, na palma
da mão, em qualquer zine que passe.
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