Sobre Victor Heringer

Literatura

08.03.18

O poeta, prosador e ensaísta Victor Heringer nos deixou em 7 de março de 2018. Nascido em 1988 no Rio de Janeiro, mesma cidade em que morreu, trabalhava na equipe do acervo de Literatura do IMS (aqui, seu último texto) e mantinha uma coluna na revista Pessoa, além de publicar em diversos cantos da internet.

Publicou automatógrafo (7 Letras, 2011), Glória (7 Letras, 2012; Prêmio Jabuti 2013), Lígia (e-galáxia, 2014), O escritor Victor Heringer (7 letras, 2015) e O amor dos homens avulsos (Companhia das Letras, 2016; finalista dos prêmios Rio de Literatura, São Paulo de Literatura e Oceanos).

Como pequena homenagem a um artista de talento tão grande, o Blog do IMS convidou amigos, colegas e admiradores a concederem depoimentos curtos sobre Victor Heringer, aqui publicados na companhia de alguns de seus trabalhos. Há também uma entrevista em áudio, concedida em 2014 à poeta e editora Alice Sant’Anna para a Rádio Batuta.

 

Renato Parada

Victor Heringer (1988-2018)

 

Lembro perfeitamente do Victor na Faculdade de Letras. Na verdade, eu o conhecera antes de o conhecer. Ou melhor, tinham chegado a mim notícias do seu brilho, da sua inteligência; que era que bem informado, gentil e, sim, bonito. Quando veio a ser meu aluno – ainda na graduação – pude confirmar todas aquelas qualidades, às quais se acrescentava uma certa ausência, um silêncio que parecia distância, ou timidez, quase um traço de esnobismo, que na juventude é um charme decisivo e se confunde com certa maturidade fora do tempo. Depois soube dele na Fundação Casa de Rui Barbosa, onde mais uma vez ele se destacou e fez amigos. E vieram os livros. Ele me mandou alguns e fui ao lançamento de outros. No final do ano passado, tive a oportunidade de trazê-lo para trabalhar no IMS. Fizemos muitos planos, rimos muito, tomamos muitos cafés, estreitamos a amizade e eu achei que tudo daria muito certo. Foi um prazer estar ao lado dele pensando, escrevendo, imaginando. Não era nenhum esnobismo, talvez a consciência precoce de sua superioridade. (Eucanaã Ferraz, poeta e curador de literatura do IMS)

“O mistério augusto da morte” capricha em contundência nesse momento. Ele era completamente adorável, e, sim, concordo com o Eucanaã: nos três meses de convivência aqui na sala de Literatura do IMS, também identifiquei no Victor uma certa “consciência precoce de sua superioridade”. Mas estranhamente temperada com doçura, com um sorriso que trazia de volta o menino que não conheci e que ressurgiu, luminoso, quando viu chegar a pilha de vinte exemplares de “O amor dos homens avulsos” a serem lidos no nosso Clube de Leitura neste 2018. (Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do IMS)

Victor me chegou, aos 21 anos, como bolsista de iniciação científica na Fundação Casa de Rui Barbosa, pela mão de minha amiga Teresa Cerdeira, professora dele na UFRJ. Com ele trabalhei na edição eletrônica dos três últimos romances de Machado de Assis. Foram dois anos de convívio semanal. Depois disso, nunca perdemos contato. Lembro de sua alegria – e da minha – quando veio me trazer um exemplar de seu último romance. A morte de Victor me deixa em estado da mais absoluta perplexidade. Não consigo parar de pensar em sua inteligência, seu senso de humor, seu talento multifacetado, sua gentileza, sua graça. Uma sensação horrível de não o ter decifrado a tempo. (Marta de Senna, professora de literatura e presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa)

 

[Victor Heringer, Para uma arte no fim do mundo (2015)]

 

Escrevo atordoada e tristíssima.Victor Heringer foi meu orientando, figura de que não precisava, pensava perfeitamente sozinho, e em 2014 defendeu a dissertação “Henrique Villas-Matas: a ironia e a reinvenção da subjetividade” no programa de Ciência da Literatura na UFRJ. Trabalho instigante, belamente defendido. Queria que continuasse logo no doutorado, mas preferiu ir para São Paulo, ser realmente escritor. Deu certo, os romances foram imediato sucesso de crítica. “O amor dos homens avulsos”, de 2016, um dos 10 finalistas do prêmio Oceanos, encantou os portugueses do júri. A quem Victor não encantava? Jovem, bonito, talentoso, gentil, boa companhia, uma escrita impecável. Tudo de bom. O que mais poderia querer na vida aos 29 anos? Só havia um problema: era a vida que ele não queria. É só ler “O amor dos homens avulsos”. Parecia ser um livro sobre o amor, mas não, é sobre a morte: do início ao fim. Mortes, dor, sofrimento, machucados, agressões, assassinatos a cada capítulo. A beleza dos olhos verdes e a ternura do agir, ocultaram enquanto foi possível o que as palavras diziam. Estaríamos juntos no IMS na terça-feira à noite. Ele não conseguiu. (Beatriz Resende, ensaísta, pesquisadora e professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ)

Obrigada, Vico,  por nos deixar um oceano de ternura nas suas palavras delicadas e sentidas – ditas e escritas. Chegou a hora de encontrar a paz que precisava e merecia. (Marianna Teixeira Soares, agente literária de Victor Hering na agência MTS)

 


 

Não sou poeta

Victor Heringer

Agora que os estalos da adolescência passaram
e a vida assenta como uma cômoda de mogno

agora que os joelhos estalam quando me levanto
sem mulher, sem filhos, mas com emprego estável
é preciso admitir que não sou poeta.

Embora o meu amor esteja solto no mundo
violento, semicego e ferido no ombro
não sou poeta.

Todos me felicitam. Que bom, dizem
vida de poeta é muito difícil.

Logo a gente chega a ser homem
e acaba com as coisas de menino.

A vida afunila.

Eu tinha dois, três truques nos bolsos
de calças compradas em shoppings.

Não soube nunca comprar como poeta
a longa espera por um par de sapatos
sentinela no deserto.

Os sapatos são fabricados e os pés dos poetas passam anos se
deformando. Até que um dia cabem.
Por isso qualquer roupa parece velha
no corpo de um poeta.
Por isso estão sempre se desculpando
pelas roupas velhas.
Mas em segredo se orgulham.

Embora eu tenha um corpo
que pode ser confundido com o corpo de um poeta
não sou poeta.

Tenho as pernas fortes e os braços magros.
O torso amolecido dos boxeadores
os órgãos de dentro estropiados.

Mas quem me vê nu instintivamente sabe que não sou poeta.

Não levantei a mão esquerda em golpe de dançarina de flamenco ao
ler Jaime Gil de Biedma para os meus amigos,
embora tudo tenha conspirado para isso.
Para que se me entranhassem as coisas.

Concluo que não sou poeta.

Tenho os dedos frios de um técnico em informática
e sou triste como um técnico em informática
mas não sou tão triste quanto um barbeiro.

Eu li todos os tratados da métrica portuguesa.

Assinei dois contratos como poeta
que doravante já não têm validade.
Assinarei um terceiro, como última traição.

Serei perdoado por todos.

Doravante vão reinar o olho e a raiva.

As melhores botas para caminhar na areia
os cálculos de longas distâncias
os treinamentos de apneia.

O amor virá até mim como vai aos jornalistas e CEOs, aos sushimen
de São Paulo (SP) que vieram do Ceará – ideais porque têm mãos quentes.

As partes elegem o Foro da comarca de São Paulo (SP), renunciando a qualquer outro, por mais privilegiado que possa ser, para dirimir todas as questões surgidas quanto à interpretação ou execução deste contrato que não puderem ser resolvidas amistosamente.

 


 

Eu estava comentando hoje mais cedo sobre a surpresa absoluta e deliciosa que foi a chegada do original dele: o Victor conversava com o passado enquanto puxava assunto com o futuro. “O amor…” era de cara um livro de ambiência e prosa muito próximas do leitor de literatura brasileira: uma crônica de saudade ambientada no Rio de Janeiro. Mas tudo isso vinha acompanhado de um approach muito contemporâneo e inventivo, configurando quase uma espécie de happening em torno de Machado, Marques Rebelo e dos cronistas canônicos da cidade. Havia um carinho por uma tradição — a crônica urbana do Rio, a história tragicômica do subúrbio, o ethos de uma sociedade mestiça (em todos os sentidos dessa palavra) — mas filtrado por uma inteligência muito aguda e informada de alguém que cresceu na internet praticando a poesia, o ensaio, o vídeo etc. O romance dele é uma síntese disso. E é um livro amoroso, na amplitude do termo. (Leandro Sarmatz, editor, poeta e escritor, editou o romance “O amor dos homens avulsos”, último livro publicado por Victor Heringer)

De tudo que o Victor tinha, e não era pouco, o que mais marcava era a elegância. Uma elegância natural, sem a menor afetação, vulnerável até, que se manifestava em tudo: nos textos, no trato, no corpo. Dessa combinação emanava uma pessoa rara e generosa, que produzia uma obra de fato muito particular, de uma inteligência quase demoníaca mas que jamais teme o afeto, e se destacava como autor também pela sensatez da postura pública em um meio que tantas vezes se perde em picuinhas gratuitas, em polemismo mesquinho, em narcisismo masturbatório. É o clichê dos clichês, mas a literatura brasileira contemporânea e esse mundo aí fora ficaram imediatamente mais pobres e menos ternos no instante em que o coração do Victor parou de bater. (Daniel Pellizzari, escritor, tradutor e editor na coordenadoria de internet do IMS)

 

[Victor Heringer, Trailer do romance Glória (2013)]

 

Alguns corações são verdadeiros. Victor será lembrado pelos leitores brasileiros como um dos melhores poetas e prosadores da sua geração; pelos amigos e conhecidos, será lembrado pela doçura absoluta. Usuário assíduo das redes sociais, nas quais sempre tinha uma piadinha engatilhada, é curioso observar que, na produção artística, Victor decidiu enfrentar o que há de mais nefasto nelas: a ironia, o distanciamento mordaz, o sarcasmo barato, a controvérsia fácil. Seus romances e poemas tinham o coração aberto como o dele. A penúltima vez em que o encontrei, embalados por uma quantidade (e variedade) violenta de destilados, entramos numa discussão de horas e horas até tarde da noite sobre ocultismo, sobre a autenticidade de uma experiência mística ou transcendental que não pode ser compartilhada, se existe algo além do nosso vão materialismo e do ceticismo orientado pela ciência. Victor sempre teve uma conexão muito pessoal e intensa com o candomblé, e ele mesmo não tinha resposta para as perguntas que fizemos em voz alta. Estou absolutamente devastado pela sua morte. Como sempre, fico pensando em algo consolador, os clichês como “espero que agora ele esteja em paz”. Espero que ele tenha encontrado alguma resposta para suas dúvidas. Sim, espero mesmo. Porque para nós ele vai fazer uma falta desgraçada, e tudo que nos deixou foram alguns livros excelentes, mas que não são nada perto da pessoa que ele era e da marca que deixou em todos que o conheceram. Esse sim foi o grande legado dele. (Antônio Xerxenesky, escritor e tradutor)

Falei com o Victor Heringer poucas vezes, então não posso dizer nada muito pessoal sobre ele. Ao mesmo tempo, se todo livro tem algo da personalidade do autor – uma parte grande e importante, especialmente se o livro é bom –, falar de literatura não deixa de ser uma intimidade compartilhada. Para quem lê com atenção, muita coisa surge nessas entrelinhas: “O amor dos homens avulsos”, por exemplo, transborda um tipo de inadequação tão trágica (para quem tem de vivê-la na realidade) quanto original (para quem extrai dela a voz necessária para se expressar, na velha e sempre renovada forma romântica). A dicção estranha de algumas frases, a sensibilidade que parece de outra época (antiga como a vida no subúrbio onde se passa a história), um tom vagamente nostálgico/mítico mesmo que contrastado com a brutalidade do presente narrativo: tudo neste romance aponta para uma espécie de ideal de tempo, lugar, linguagem e afetos que não são os que temos aqui e agora. É uma forma sutil de recusa, que soa radical num texto também tão cheio de ternura, e talvez um comentário sobre quem o escreveu – seu passado, seu presente, quem sabe o seu curto futuro. (Michel Laub, escritor)

 

[Victor Heringer, Este verso será grande (2011)]

 

Conheci o trabalho do Victor Heringer quando me pediram que resenhasse “O amor dos homens avulsos” para a Folha de S.Paulo. Um autor tão jovem, um título com tantas ressonâncias. Vamos lá, pensei. Li o romance em uma tarde, encantada e emocionada. Cada autor, e em especial cada livro, é uma combinação única. Mas aquela era diferente, era singular de um jeito ainda mais específico. Tudo ali era harmonia e afinação, a delicadeza se sobressaindo nos detalhes. Isso é raro, e é ainda mais bonito quando se manifesta em e através de um escritor tão jovem. Havia, e ainda há, e vai continuar a haver, algo ali. Algo muito poderoso. E distinto, inimitável. Em alguma medida, os autores mais talentosos têm sempre esse algo inimitável — que os torna quem são, que os destaca, que os marca para sempre. (Camila von Holdefer, crítica literária)

Há dez anos conheci Victor nos jardins da Casa Rui. Éramos machadianos. No ano passado, pintou em Los Angeles por Skype. Participou da aula sobre “O amor dos homens avulsos” tomando cerveja. Por trás dele, pôsteres berrantes com tiradas irônicas. Era sua fase de um lindo e polido bigode obsceno. E agora segue, para lá dos pôsteres, sorrindo sua literatura de ternura lúcida e tremenda. Um saudoso brinde a você, querido Victor. (José Luiz Passos, escritor)

Os livros de Victor Heringer

, , , , ,