Estou desenvolvendo há alguns anos um conjunto de poemas intitulado Spoilers, dentro do meu trabalho de doutorado. Costumo pensar a criação de um livro de poemas como uma espécie de quebra-cabeça com um número desconhecido de peças, e no qual cada uma deve oferecer todo um sentido por si mesma. Dependendo da maneira como se combinam, podem formar figuras maiores, ainda que sutis, por convergência ou contradi(c)ção, dentro da imagem total do quebra-cabeça. Assim, à medida que vou criando, me obrigo a um movimento contínuo de desencaixe e reencaixe das peças que já existem. Ao que tudo indica, faltam poucas.
Preâmbulo para um poema tardio
Ir para o inferno toma tempo
à cata do incidente emaranhado
toma tempo e trinta e tantas
tentativas, primeiras palavras
pedidos de desculpa e demissão:
ricocheteios de cascalho
na superfície da memória.
Não basta boa vontade
para chegar ao inferno
é preciso o reflexo condicionado
de não estar pensando e de repente
estar: voltar a si, se descobrir
antes da próxima rodada
durante um jogo de tabuleiro.
Também estudo insistente
sobre circunstâncias agravantes
suscetibilidades compatíveis
com as dimensões e o caráter
irrevogável do incidente:
o inferno, afinal, é dos autodidatas
não dos autocomplacentes.
Diante da ausência de um guia
adequado à faixa etária
e aos índices de umidade
a disposição ao segredo, ao resta um
da existência é requerida:
o resto é vade retro e tira-gosto
de luto, vitamina c e cama.
Memorabilia II
Numa década em que estive
esgotaram-se as avós.
Guardei da primeira o clarão
na janela, de través
déjà vu de um travesseiro
da segunda chinelos de lã
arrastados rastelando
cada dia, cada dia.
Esgotaram-se as avós
em dez anos: uma antes dos trajetos
no banco – éramos três – de trás
do corcel azul cobalto
galopando a três-oito-meia
e o lombão da Medianeira
antes das temporadas
dos temperos de Cidreira
– céu de brigadeiro, mar de chocolate
nescau com açúcar na cama
vinagre espargido nas costas –
antes das tardes de temporal
– pijama, pipoca e pitfall –
no tapete verde da sala
a outra durante o trajeto
sem fim atrás do doutor
que devia
– só podia –
estar brincando
de esconder
e ganhou.
Fuga
Por exemplo, cavar com o dedo indicador
contrariamente à direção da luz.
Romper películas de vidro transparentes
campos elétricos, cristais, diodos
doidos, transistores.
Sentir na epiderme os tristes eletrodos
o lodo de íon-lítio, condutores, semicondutores
no dedo que entra fundo na ferida
traindo a memória untada de filtros, frases feitas
editadas, excluídas por remorso
e segundas intenções
deixando escorrerem as horas
perdidas, a rotina com script, as opiniões
sobre tudo e sobretudo as risadas
pré-moldadas e outras onomatopeias emotivas.
Destroçar contatos, causas, compromissos
agendados, simplesmente ir em frente
e depois da casca pouco espessa de alumínio
emergir do outro lado: eis um furo
real no muro virtual.
Acordar sobressaltado ao som dos pintassilgos
programados
tomar ar, entender que foi um bug
apenas, um sonho ruim, um mecanismo
inconsciente, contingente
e acariciar a areia movediça iluminada
(quem sabe dez minutos
de sono tranquilo?)
da tela touch screen.
Praça de alimentação
A vida – esse burrito de argamassa
que a gente vem comer com fome e pressa
e para digerir leva um bocado
O tempo – esse temaki de água-viva
um cone algodoado feito luva
que a mão humana nunca é que se livra
O ser – essa salada contingente
de folhas frutas brotos
chochos de esperança
A lógica – esse hambúrguer carbonato
de sódio lítio glúten glutamato
e uma porção pequena de poliestireno
A moral – essa pasta nada à moda
escalopes ao molho madeira e talheres
pretos plásticos embalados
A razão – essa torre de chopp
esse xarope útopico
gaseificado
A ética – esse suco descartável
polpa de água batida
em copo ecológico certificado
A fé – esse café de águas passadas
por cápsulas viçosas de alumínio
aos pingos espartanos de aspartame
A metafísica – essa paleta intraduzível
palito enobrecido
entorpecido de recheio
O cosmo – esse amontoado de pequenos sóis
com tampo de granito onde orbitamos
acenando ansiosos para sermos vistos