Tudo sobre sua mãe

No cinema

22.07.16

O tema da maternidade, que de uma forma ou de outra atravessa toda a filmografia de Anna Muylaert, ganha centralidade em seus dois longas-metragens mais recentes. Se no filme anterior, Que horas ela volta? (2015), o ângulo de abordagem iluminava a estrutura social de dominação e suas transformações, em Mãe só há uma o foco é a identidade de gênero e orientação sexual. Trata-se ainda de uma opressão, mas de outra ordem.

Inspirada num fato de noticiário policial – uma mulher que roubava bebês não por dinheiro, mas para criá-los como filhos –, a diretora resolveu dobrar o risco e acrescentar a essa questão uma outra, igualmente complexa e espinhosa: a sexualidade fluida, cambiante, indefinida, de um adolescente.

Ambivalência e atrito

O adolescente, no caso, é Pierre (Naomi Nero, extraordinário), paulistano de classe média que cursa o segundo grau e tem uma banda de rock. Pierre, por assim dizer, é uma esfinge. Já nas primeiras imagens somos apresentados a sua ambivalência sexual: numa festa, depois de rejeitar educadamente a abordagem de outro rapaz, ele faz sexo no banheiro com uma garota, só que vestido de calcinha e cinta-liga. Seu próprio rosto é o de um belo roqueiro andrógino e sua sexualidade não é um problema.

O problema começa quando chegam policiais à sua casa e ele descobre que sua mãe (Daniela Nefussi) não é sua mãe. Tem início aí uma conturbada e dolorosa jornada de adaptação a uma nova família, a um novo mundo, a uma nova vida. Se é que “adaptação” é uma palavra que cabe aqui. O que há é choque, atrito, descompasso, fricção.

Com a desenvoltura narrativa e a precisão de detalhes que caracterizam seu melhor cinema, Anna Muylaert expõe as razões e os afetos de todos os envolvidos, ainda que em primeiro plano esteja sempre Pierre (ou Felipe, seu nome original). Dos olhares mais sutis aos gestos mais drásticos, dos silêncios mais profundos aos discursos mais eloquentes, nada passa despercebido, nada é desnecessário ou dispensável.

Espaço mutilado

De diferente em relação ao longa anterior da diretora, feito de planos mais abertos e ambientes bem definidos, o que vemos aqui, sobretudo no início, é uma narrativa mais fragmentada, em que o espaço parece sempre incompleto e a própria figura humana, frequentemente mutilada. A sensação de falta soma-se à de indefinição, duas vertentes centrais da narrativa.

Mesmo um personagem um pouco mais chapado, quase unidimensional, como o pai biológico do rapaz (Matheus Nachtergaele), tem lá suas sutilezas e arestas. Mas claro que é a mãe (Daniela Nefussi) que ganha mais atenção. O conflito entre sua tentativa de acolher o “novo” filho e seu esforço interior para compreendê-lo transparece em cada olhar, palavra e movimento.

A primeira manifestação desse embate, e uma das mais contundentes, aparece no jantar em que Pierre/Felipe é apresentado a sua família biológica. Enquanto os outros tagarelam amenidades para disfarçar o incômodo, a mãe observa as unhas azuis do filho e pergunta em voz baixa: “Você pinta as unhas?” Ele só concorda com a cabeça. Entre carinhosa e apreensiva, ela diz: “É para tocar na banda, né?” Quase que por compaixão, ele faz que sim.

Afeto libertário

Ainda que sejam centrais, porém, os dramas da maternidade e da sexualidade não esgotam a potência do filme. Talvez o que ele tenha de mais fecundo seja a ideia da criação de novos laços, de novos afetos, de novas famílias. A aproximação hesitante entre Pierre/Felipe e o irmão mais novo que ele não conhecia (Daniel Botelho) é o exemplo mais evidente, mas há outros, na banda, no colégio etc. O mundo retratado em Mãe só há uma é um lugar de relações fluidas, abertas para infinitas possibilidades, em que nada está dado como definitivo ou imutável. Lembra, nesse aspecto, o olhar libertário de um Pedro Almodóvar.

Aqui vai um pequeno spoiler. Quem preferir pode pular este parágrafo. O leitor perspicaz (e que lê o que está entre parênteses) deve ter percebido que uma mesma atriz representa as duas mães do filme, a biológica e a postiça. Anna Muylaert faz aqui o oposto do que fez Luis Buñuel em Esse obscuro objeto do desejo, em que duas atrizes bem diferentes encarnavam uma única personagem. Aqui, a operação parece jogar ironicamente com o próprio título do filme e tornar ainda mais complexa sua questão central: o que é que caracteriza a maternidade, afinal? O que é que torna “única” uma mãe?

O crítico Inácio Araujo lamentou que o filme abandone muito depressa a personagem da mãe postiça, que a seu ver seria a mais interessante a ser observada. Pode ser. Daria outro filme, sem dúvida. Mas este que temos diante de nós é, no mínimo, notável.

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