De Manoel a Miguel, o cinema d’além mar

No cinema

22.10.12

Aos 103 anos, Manoel de Oliveira pode dizer que já fez de tudo no cinema, de documentários a épicos históricos, de ópera filmada a romances de folhetim. Seu filme mais recente, O Gebo e a sombra(2012), em cartaz na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é o que se poderia chamar de cinema de câmara, no mesmo sentido em que se fala de música de câmara: poucos personagens, ação concentrada no tempo e no espaço (um único local, dois ou três dias), um motivo recorrente em torno do qual se tecem variações.

Esse motivo – aqui também no sentido musical – é o da honradez pessoal, que abarca não apenas a imagem pública do indivíduo, mas sobretudo sua consciência mais profunda, sua exigência moral com relação a si mesmo.

Num tempo não definido, provavelmente algum momento do século 19, Gebo (Michael Lonsdale) é um velho contador que vive com a mulher, Doroteia (Claudia Cardinale), e a nora Sofia (Leonor Silveira). Com a cumplicidade da nora, ele esconde da esposa um terrível segredo: o filho do casal, João (Ricardo Trêpa, neto do diretor), é um foragido da justiça, acusado de roubo e assassinato.

http://www.youtube.com/watch?v=P7YLxYKjY7k

A vida do trio parece escoar tristemente nesse jogo silencioso: Doroteia vive de esperar notícias do filho, Gebo e Sofia vivem de escondê-las ou falseá-las. Sem disfarçar a origem teatral do texto (uma peça de Raul Brandão), Manoel de Oliveira divide sua narrativa em três atos. No segundo, João, o filho nada pródigo, surge abruptamente, a ponto de podermos, num primeiro momento, tomá-lo equivocadamente por um fantasma.

É como se, num drama de Tchekov, em que todos discorrem resignadamente sobre a passagem do tempo e a pequenez da existência, irrompesse de repente um personagem de Dostoievski, trazendo consigo a revolta e a tragédia. E mais não digo, para não estragar o encanto desse filme límpido e denso, em que a melancolia da luz dos candeeiros parece revelar o tempo sedimentado nas roupas, nos objetos e nos rostos.

E que rostos! Michael Lonsdale abriga em seus olhos cansados toda a dignidade do mundo. Em sua beleza outonal, Claudia Cardinale é a própria “mater dolorosa”, com seu incondicional e tirânico amor ao filho. Mas quem rouba a cena, se é que é possível, é a octogenária Jeanne Moreau, espirituosa e astuta na pele da vizinha Candidinha. Ver em cena esses atores esplêndidos – aos quais se junta Luís Miguel Cintra, no papel do vizinho “artista” – é um regalo que Manoel de Oliveira nos oferece, com a generosidade de sempre.

E o melhor é saber que ele já está preparando o próximo, A igreja do diabo, inspirado em Machado de Assis e protagonizado por Fernanda Montenegro e Lima Duarte.

Miguel Gomes, o inquieto

Outro cineasta português em destaque na Mostra de São Paulo é Miguel Gomes, que terá exibida no evento sua ainda pouco extensa filmografia (três longas e cinco curtas). Aos 40 anos – praticamente um menino, se comparado a Manoel de Oliveira -, Gomes parece empenhado em transgredir os gêneros e subverter expectativas a cada filme que realiza.

Ainda não vi A cara que mereces (2004), seu primeiro longa. Os outros dois são muito diferentes um do outro, mas igualmente estimulantes. Em Aquele querido mês de agosto, que ganhou o prêmio da crítica na mostra de 2009, uma equipe de cinema meio mambembe vai a uma aldeia nas montanhas portuguesas para realizar um filme de ficção e acaba se envolvendo com a população local e sua cultura, suas festas e tradições. O longa de Gomes, divertido e surpreendente a cada plano, é essa sobreposição de registros. Cinema poroso, impuro, aberto à vida.

Já o recente Tabu, prêmio da crítica internacional do festival de Berlim deste ano, tem uma construção completamente diversa. Rodado em preto e branco, divide-se em duas partes bem distintas. Na primeira, na Lisboa atual, Aurora (Laura Soveral), uma velha cheia de manias e viciada em jogo, inferniza a vida de sua empregada cabo-verdiana (Isabel Cardoso) e da vizinha empenhada em causas sociais (Teresa Madruga). A segunda parte é a história secreta de Aurora, revelada depois de sua morte por seu ex-amante. Desenrola-se então uma espécie de paródia dos filmes românticos e de aventuras ambientados na África.

http://www.youtube.com/watch?v=-Zi3k0JpivY

A narração indireta, alimentada pela memória de um personagem envolvido nos eventos relatados, suscita uma encenação irônica, que zomba dos clichês do cinema colonialista – e do próprio colonialismo, do qual a relação entre patroa e empregada, na parte ambientada no presente, é uma clara herança. Uma curiosidade nessa co-produção Portugal-Alemanha-Brasil-França é a presença do jovem ator brasileiro Ivo Müller, no papel do marido traído por Aurora na África.

Ainda é cedo para saber para onde vai o cinema inquieto de Miguel Gomes, mas não resta dúvida de que vale a pena acompanhar seus próximos passos.

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