Só tinha visto dois filmes do incensado diretor canadense Xavier Dolan (26 anos) quando resolvi dar uma chance à unanimidade da crítica e ir assistir a Mommy (prêmio do júri no Festival de Cannes deste ano), em cartaz em Paris e Bruxelas. Sei que é absurdo falar de filmes que as pessoas em geral ainda não viram e que não poderão ver nos próximos meses (o filme foi exibido no Festival do Rio; a estreia no Brasil está programada para 2015), mas este é um caso especial.
Cena do filme Mommy
A afetação do primeiro filme de Dolan que eu vi, Os amores imaginários, me irritou como fazia tempo eu não me irritava no cinema. Depois, assisti a Laurence Anyways, em São Paulo, e o filme me deixou de tal modo indiferente, que já nem me lembro do que vi. Eu tinha tudo para ignorar Mommy. Mas já na primeira cena, com a confusão de pontos de vista, quando a mãe do título assiste ao próprio acidente de carro, como se fosse uma espectadora fora da cena, para só voltar a si depois do fato consumado, entendi que estava diante de uma obra-prima.
Assisti a Os amores imaginários em Berlim, com legendas em alemão, que eu não falo, mas sem as quais seria impossível entender a língua falada pelos atores. Entretanto, mais difícil do que o calão quebequense (o mesmo falado pelos personagens de Mommy) era entender o que as pessoas viam naquele pedantismo amaneirado. A sorte é que não sou crítico de cinema, porque ali já devia estar anunciado, sem que eu pudesse ver, o que acabei reconhecendo boquiaberto em Mommy.
É verdade que Xavier Dolan não ajuda. O que ele tem a dizer em entrevistas é em geral afetado, pretensioso e fútil. Se antes de ir ver o filme, eu tivesse cometido a asneira de assistir à participação dele num programa de auditório muito popular da televisão francesa, por ocasião do lançamento de Mommy na França (o vídeo está disponível no YouTube), nada teria sido capaz de me convencer a lhe dar uma nova chance. Entrei no cinema porque tinha que fazer hora e estava passando na porta. Entrei pronto para sair no meio do filme, mas em menos de dez minutos já queria ficar para a sessão seguinte.
Poucos filmes resolvem tão bem a síntese entre forma e conteúdo, sem que o espectador deixe de perceber a autonomia dos dois. Mommy é projetado num quadrado, um quadro praticamente vertical, como a tela de um celular, no centro da tela horizontal e retangular da sala de cinema, o que remete à banalidade e à proliferação histérica e narcisista das imagens no mundo contemporâneo, com seus instagrams e selfies. A certa altura, porém, quando o espectador já entendeu o que está em jogo ali, que os personagens, massacrados pela vida, tentam sobreviver do jeito que dá, lutando contra condições adversas, com os instrumentos que encontram pela frente, eles vivem finalmente um intervalo de pura euforia, de bicicleta pelas ruas de Montreal. E nesse momento, quando o espectador também já se acostumou com aquele enquadramento peculiar como uma coisa natural, Dolan faz coincidir a forma do filme ao êxtase dos personagens em cena, dando um sentido maravilhoso à potencialidade do cinema e ao limite que ele tinha se imposto até então com o quadro vertical, que é o que afinal permite a passagem ao êxtase, também na forma. E, de repente, apenas por um instante, o que podia parecer gratuito e arbitrário, e que por hábito já estava se tornando natural, ganha outro sentido, maior do que a simples referência à banalidade das imagens no mundo contemporâneo. Um sentido ao mesmo tempo grandioso e simples. Tudo em Mommy diz respeito ao êxtase libertário desse instante, que não pode durar, mas que vale a vida ou um filme.
É difícil falar de um objeto assim, em termos genéricos e abstratos, sem descrever aquilo de que se fala, mas descrever, nesse caso, estragaria tudo. O filme conta a história de uma mãe e de um filho disfuncionais. Quando o filme começa, o menino está internado num reformatório e a mãe é chamada para levá-lo de volta para casa, porque já não podem ficar com ele, o menino acaba de atear fogo às instalações do internato, deixando um dos colegas gravemente queimado. O filme é a história trágica de um esforço e de um teste aos limites do amor. É a tentativa dessa mãe de salvar o filho da lei e da punição. A esse esforço vem se juntar uma vizinha afásica, ex-professora que perdeu a voz depois de um possível drama familiar e que está de passagem pela cidade, com o marido e a filha, em fuga de um passado que o filme não explicita. Durante as mais de duas horas de filme, os três vão se ajudar mutuamente, sem preconceitos, porque chegaram cada um por uma via a esse lugar da dor e da experiência onde os preconceitos já não são possíveis. E, por um instante, tudo vai parecer possível. Mas só por um instante, que é o que pode durar o êxtase e a liberdade.
A essa altura, comecei a me perguntar onde é que aquilo podia dar (porque só podia acabar mal) e comecei a temer pelo fim do filme. Acho que foi Godard (de quem Dolan é um admirador confesso) quem disse que não se termina um filme congelando o quadro, porque seria um final grosseiro e preguiçoso. O fim de Mommy contradiz Godard com um congelamento de outra ordem, que confirma mais uma vez a síntese entre a forma e o conteúdo desse filme que insiste em dizer o tempo inteiro que o êxtase só pode durar um instante. Dolan congela a liberdade antes que ela seja interrompida, no ar, antes de voltar a tocar o chão, antes de ouvirmos a voz de Lana del Rey, cantando “Born to Die”, um título tão eloquente para a ocasião. E não deixa de ser um final feliz, como só é possível no cinema.