Schroeter: cinema e paixão

Cinema

07.08.13

Werner Schroeter (1945-2010), definiu Wim Wenders, “fez filmes fantásticos sobre pessoas artificiais”. O Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro exibe entre 9 e 22 de agosto a mostra Entre a avant-garde e o cinema de arte, com 16 filmes do cineasta: Argila (1968), Eika Katappa (1969), Piloto de bombardeio (1970), A morte de Maria Malibran (1971), Willow Springs (1972), O anjo negro (1974), Flocos de ouro (1975), Palermo ou Wolfsburg (1979), Ensaio geral (1980), Dia dos idiotas (1981), Concílio de amor (1982), A estrela risonha (1983), Sobre a Argentina (1986), A procura do sol (1986), Duas (2002) e Noite de cão (2008).

Werner Schroeter

Werner Schroeter (1945-2010)

Como outros cineastas de sua geração, Werner Schroeter filmou com frequência fora da Alemanha. Como Wenders, que foi a Portugal para filmar o estado das coisas e o céu de Lisboa, fez uma viagem a Tóquio para filmar Ozu e logo uma viagem até o fim do mundo (bis ans Ende der Welt). Como Herzog, que veio à Amazônia para filmar Aguirre (der Zorn Gottes) e a construção de um teatro de ópera no meio da floresta (Fitzcarraldo).

Schroeter via na ópera o poder das emoções – como Kluge, que fez Die Macht der Gefühle para falar de sua paixão pelo teatro de ópera – e não se limitou a fazer filmes (digamos assim) operísticos, como também dedicou-se simultaneamente ao cinema e à ópera. Como Herzog, encenou Wagner – Lohengrin e Tannhäuser – e numa precisa ocasião dirigiu cenas do Ernani, de Giuseppe Verdi, para serem filmadas por Herzog em Fitzcarraldo.

Noite de cão (2008)

Noite de cão (2008)

Tinha uma admiração incondicional por Maria Callas, não muito distante da que Wenders nutria por Nicholas Ray e Fassbinder por Douglas Sirk. Era, enfim, um típico diretor da geração que reinventou o cinema alemão depois do manifesto de Oberhausen no começo da década de 1960 (Der alte Film ist tot. Wir glauben an den neuen): o cinema do papai morreu. No entanto, observou Fassbinder, Schroeter passou um longo tempo meio dentro, meio fora do cinema alemão, fechado num beco sem saída entre a televisão e o cinema experimental:

Schroeter foi durante mais de uma década – um longo período, um tempo longo demais – o diretor mais importante, o mais excitante, o mais crítico e o mais determinado de um cinema alternativo, geralmente chamado underground, o que reduz suavemente, embeleza e finalmente sufoca o cinema em um terno abraço. Na realidade, não existe um cinema underground.

Para Fassbinder, existe mesmo é a urgência de fazer filmes, e os verdadeiros criadores “não podem esperar por um atestado de profissionalismo” para filmar: “fazem filmes de qualquer maneira, em 35 ou 8 mm, o que na verdade não tem nenhuma importância – serve apenas para confinar alguns diretores num espaço minúsculo, absurdo, fechado”.

Dia dos idiotas (1981)

Dia dos idiotas (1981)

Schroeter começou a filmar aos 12 anos e tinha pouco mais de 20 quando participou do EXPRMNTL, o Festival International du Film Expérimental et Poétique da cidade belga Knokke-le-Zoute, com um filme em 8 mm, Retrato de Maria Callas. No festival, a descoberta do cinema independente e marginal norte-americano (Kenneth Anger, Michael Snow, Norman McLaren) e do cinema experimental e de avant-garde europeu (Walerian Borowczy, Oskar Fischinger). A partir de então Schroeter buscou um cinema perto do melodrama musical, da ópera italiana, da música sacra francesa e alemã e da paixão gritada em canções populares contemporâneas – e, principalmente, iluminado pela figura de Maria Callas.

No programa da mostra no IMS, os dois filmes que projetaram seu nome no cenário do cinema experimental europeu: o curta-metragem Argila (1968), em que duas cenas iguais – uma em preto e branco e a outra colorida – aparecem lado a lado na tela separadas por uma ligeira diferença de tempo, e o longa-metragem Eika Katappa (1969), em oito partes e duas horas e meia de projeção, exibido e premiado no Festival de Mannheim em 1969 e selecionado no ano seguinte para o programa da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.

A partir de então, sem espaço nas salas comerciais, Schroeter aproximou-se da televisão. Das kleine Fernsehspiel / O pequeno teatro da televisão da ZDF foi seu principal produtor e espaço de exibição. Num programa noturno dedicado ao cinema experimental foram exibidos os filmes que ele realizou, em sua maioria, fora da Alemanha – no México, O anjo negro; nos Estados Unidos, Willow Springs; nas Filipinas, A estrela risonha; na França, Duas; em Portugal, Noite de cão – para citar apenas títulos exibidos na mostra no IMS.

Piloto de bombardeiro (1970)

Piloto de bombardeiro (1970)

Só a partir do final da década de 1970, com duas obras que marcam uma nova radicalização em seu cinema, um salto da experimentação puramente visual para a dramática (“é mais radical trabalhar com o conteúdo do que com a estética da imagem”), seus filmes passaram a ser mostrados em cinemas comerciais na Alemanha: Reino de Nápoles (1978), inteiramente falado em dialeto napolitano) e Palermo ou Wolfsburg (1979), metade falado em dialeto siciliano, metade em alemão.

Quando, em 1980, recebeu o Urso de Ouro do Festival de Berlim por Palermo ou Wolfsburg, Schroeter era um diretor mais conhecido e admirado na Itália e na França – na França em particular, onde Michel Foucault fez um comentário entusiasmado sobre A morte de Maria Malibran:

O que Schroeter faz com um rosto, com a maçã do rosto, os lábios, a expressão dos olhos, é um multiplicar e um florescer do corpo, uma exultação. Não é um filme sobre o amor, mas um filme sobre a paixão.

Nenhum comentário poderia deixá-lo mais feliz:

O conflito do amor e da paixão é o assunto de todas as minhas obras. Ingrid Caven, me disse certa vez que o amor é um sentimento egoísta, pois não leva em consideração o outro. Podemos amar sem ser amado, num estado de solidão. Quer dizer, a paixão contém em si mesmo uma grande força comunicativa. No amor estamos isolados.

Paixão, não o amor, insistiu mais tarde num encontro com Foucault:

Desde a infância sei que devo trabalhar, mas não porque me disseram que devemos trabalhar – eu era muito anárquico e inquieto para acreditar nisso. Devo trabalhar para me comunicar, porque na vida são raras as possibilidades de se comunicar. É necessário trabalhar para exprimir-se. Na verdade, trabalhar é criar. Conheci uma prostituta muito criativa que teve com a sua clientela um comportamento social criativo e artístico. Este é meu sonho. Enquanto não atinjo estados de paixão, trabalho.

Duas (2002)

Duas (2002)

Werner Schroeter foi um diretor que fez cinema movido pela paixão. E Fassbinder, num texto de 1979 sobre O reino de Nápoles (incluído depois na coletânea Os filmes liberam a cabeça / Filme befreien den Kopf), estabeleceu um paralelo com a literatura para indicar a importância de seus filmes para o cinema alemão:

Werner Schroeter, durante dez anos não deixavam que ele deixasse de ser um diretor de cinema underground, terá mais tarde, na história do cinema, um lugar que, na literatura, eu situaria entre Novalis, Lautréamont e Louis-Ferdinand Céline. Eu aprendi com coisas decisivas nos filmes de Schroeter, é preciso dizer e escrever isso com toda a clareza. Na verdade, todo nós que fazemos cinema na Alemanha temos uma dívida com os filmes de Schroeter.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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