Sim, os mortos são uma gentinha

Literatura

25.09.13

Daniil Kharms

Daniil Kharms (1905-1942), autor russo que foi um dos pioneiros do absurdismo, enfim recebeu a primeira edição brasileira. Os sonhos teus vão acabar contigo, com tradução direta do russo de Aurora Fornoni Bernardini, Daniela Mountian e Moissei Mountian, acaba de ser lançado pela Kalinka dentro da coleção Contos russos modernos: 1900-1930. Como informa o subtítulo, o volume inclui prosa, poesia e teatro – e também o manifesto da OBERIU, grupo de artistas que Kharms fundou com amigos de Leningrado em 1928. É um pacote completo e de organização quase amorosa, que inclui os poemas no original (e quem, mesmo não sabendo diferenciar russo de búlgaro, não gosta de passar alguns minutos admirando frases em cirílico?).

Em seus 36 anos, Dandan (como também era conhecido, e me permito a intimidade por motivos que – espero – ficarão claros ao final do texto) transitou por diversos gêneros, sempre fiel ao seu universo cheio de catástrofes inusitadas, cruzando banalidade e nonsense com toques de um humor seco e quase sádico. Inquieto, deixou poemas, peças, diários, ensaios, noveletas, textos sobre matemática e numerologia e, principalmente, breves contos que muitas vezes parecem (e só parecem) ser apenas fragmentos. São narrativas em tensão permanente não apenas com o mundo, mas consigo mesmas. Mas, perseguido pelo regime por conta de sua estética contrária às diretrizes do realismo socialista, publicou muito pouco em vida: à exceção de dois poemas, vierem à tona apenas os trabalhos dedicados ao público infantil. Sua obra adulta, cujos manuscritos foram preservados pela irmã e um amigo, permaneceu praticamente inédita até os estertores da União Soviética, na segunda metade dos anos 1980.

Mesmo se dedicando somente a textos e traduções para crianças, Kharms não foi deixado em paz pelo governo soviético. Por conta das pressões do governo sobre as editoras, o trabalho foi rareando e o escritor se afundou em dívidas, chegando a passar fome. Em 1941, foi preso (acusação genérica: “traição”) e internado num hospital psiquiátrico. Em pleno Cerco de Leningrado, Dandan foi abandonado numa solitária e esquecido por lá. Acabou morrendo de fome e frio, em fevereiro de 1942. Reza a lenda que, ao lembrarem de sua existência, o corpo tinha sido devorado pelos ratos. Verdade ou não, esse epílogo da vida de Kharms evoca não apenas sua literatura, mas ecoa também um conto específico: O sonho. Nele, o personagem Kalúguin dorme e acorda, acorda e dorme, se descobre preso nesse ciclo e vai definhando até ser considerado antissanitário e imprestável por agentes do governo. “Dobraram Kalúguin ao meio e o jogaram fora como lixo”, diz a última frase.

Meu primeiro contato com Daniil Kharms se deu em 2000, enquanto eu revirava a internet a lenha exerecendo o hábito sadio de descobrir escritores que eu ainda não conhecia, mas deveria conhecer. Como ficcionista em maturação, estava começando a explorar com certo afinco a retórica absurdista. Pesquisando sobre autores relacionados a Gógol, acabei caindo numa tradução para o inglês de Púchkin e Gógol e de lá para um site que – maravilha gloriosa – continha boa parte da obra de Dandan em inglês (o site sobreviveu ao assassinato da Geocities pelo Yahoo! e permanece no ar). Era um desses acasos felizes que assustam pela trivialidade. Parti para a leitura, animado, e meu cérebro quase escorreu pelos ouvidos quando cheguei num conto intitulado Velhas que caem (aqui na ótima tradução de Daniela e Moissei Mountian):

Por excesso de curiosidade uma velha meteu-se pra fora da janela, caiu e espatifou-se.

Outra velha apareceu na janela e começou a olhar para a espatifada, mas por excesso de curiosidade também se meteu pra fora da janela, caiu e se espatifou no chão.

Depois caiu uma terceira velha da janela, depois uma quarta, e depois uma quinta.

Mas, quando caiu uma sexta velha, eu fiquei entediado e fui à feira de Máltsevski, onde ouvi dizer que um cego ganhou um xale de tricô.

O motivo da quase-síncope: aquilo era muito, mas muito parecido com um conto chamado Gravidade, que eu tinha escrito e publicado na internet uns meses antes. Tão parecido que parecia plágio – um plágio melhorado, uma versão superior redigida por um sujeito morto trinta e dois anos antes de eu nascer. E o desgraçado tinha me aprontado aquela usando cerca de cem palavras, enquanto eu tinha precisado de quase seis vezes mais! Um verdadeiro abuso. Sim, os mortos são uma gentinha, como escreveu o próprio Kharms na noveleta A velha, também incluída na antologia da Kalinka. É preciso estar sempre alerta.

Aquela coincidência me pareceu um recado bem claro, e tomei a única providência que me pareceu lógica: não descolar o traseiro da cadeira até ler tudo que havia para ser lido de autoria daquele russo safado, e em seguida espalhar a boa nova. Escrevi sobre ele, cometi traduções indiretas de alguns dos contos e publiquei na internet. Conquistei novos admiradores para meu xará, como a escritora Vanessa Barbara. Daniil Kharms nunca mais me plagiou depois do affair Velhas que caem/Gravidade, mas a leitura de sua obra quase-completa desabou na minha cabeça como uma senhora idosa e bem acima do peso. Assumindo o russo com padrinho, mergulhei no absurdismo por vários anos. O livro das cousas que acontecem (2002), meu segundo livro, homenageia Kharms não apenas no título, referência direta aos Causos, mas o traz como personagem de um dos contos. E a sombra morna de Dandan também marca presença no meu romance absurdista Dedo negro com unha (2005), como escancara o núcleo pseudorrusso capitaneado por Fedora Danilovna Pozdnicheva. Sim, o negócio foi sério.

Por anos a fio, jamais perdi qualquer chance de falar sobre Daniil Kharms, e só podia responder com uma cara triste – ou indicar uma tradução portuguesa dificílima de se encontrar por aqui, e que quase ninguém se animava a encomendar – a quem me perguntava se havia alguma edição brasileira. Mas agora temos Os sonhos teus vão acabar contigo, e isso me inspira uma felicidade (quase) tão intensa quanto a proporcionada por esta imagem:

Gógol versus Púshkin

E assim é que é.

* Daniel Pellizzari é redator do site do IMS.

Nota: aqui me ofereço à humilhação pública e reproduzo o tal conto plagiado por Kharms para o benefício de quem tiver se interessado (vai que). Foi incluído em Ovelhas que voam se perdem no céu (2001), e depois na antologia em ebook Melhor seria nunca ter existido (2012):

Laura está na cozinha, prestes a colocar um pernil dentro do forno. São nove e quarenta e três da manhã e o dia não está nem frio nem quente. O céu está azul e sem nuvens. O pernil foi temperado no dia anterior. Assim que abre o forno, Laura escuta um ruído pela janela às suas costas. Olha para trás e enxerga apenas o céu e alguns prédios. Está quase voltando para o forno quando um pequeno vulto cruza muito veloz o espaço emoldurado pela janela. Menos de um minuto depois, outro. E mais outro. O último vulto passa miando.

Laura se aproxima da janela para espiar melhor o que está acontecendo e quase é atingida por mais um dos vultos cadentes. São gatos. Caem em intervalos regulares e vão se empilhando no piso da garagem do edifício. Alguns miam, mas a maioria desaba em silêncio. Nenhum outro morador parece ter percebido o que está acontecendo, e tampouco o porteiro apareceu na garagem. Laura enfia a cabeça pela janela e olha para cima, tentando enxergar de onde vêm os gatos. Mais uma vez quase recebe um deles na cabeça. Calcula então o tempo entre cada queda e olha rápido para cima. É impossível saber de onde estão caindo. Tanto pode ser do último andar do edifício quanto do próprio céu. Procura por algum avião. Nada. São apenas gatos caindo.

Laura dá um salto para trás quando a primeira vaca passa pela janela emitindo um mugido profundo. Tentar descobrir de onde os animais estão caindo se torna de repente uma tarefa mais perigosa. Laura se limita a ficar encostada quase perpendicularmente na parede ao lado da janela, de onde enxerga a pilha de gatos e vacas crescendo sem parar. São vacas de todo tipo e coloração, e para a surpresa de Laura elas não explodem em sangue e tripas quando chegam ao solo. Vão apenas se acumulando uma sobre a outra, imóveis e definitivamente mortas. Algumas caem mugindo, outras sem querer fazem um pouco de barulho quando o sino que trazem no pescoço badala, mas a maioria desaba em silêncio. Assim como os gatos, caem só deus sabe de onde e se aglomeram no piso da garagem.

Laura já está com o telefone na mão ligando para a polícia quando enxerga um vulto diferente passando pela janela. Parece algo maior que os gatos mas menor que as vacas, só que mais colorido. Ela se aproxima novamente da janela e tenta entender aquele borrão meio verde em cima das vacas, mas não consegue. Quando mais um dos novos vultos risca sua visão, começa a entender. São velhas. Velhas caindo do céu. Senhoras idosas trajadas com vestidos coloridos. Caem em silêncio, sem gritar nem se debater. Uma delas cai mais lenta, com uma sombrinha aberta. Sorri para Laura, que quase responde com um aceno. A pilha cresce cada vez mais, quase atingindo a altura do segundo andar do edifício. Mesmo assim as velhas não param de cair. Depois das senhoras de vestidos coloridos começam a surgir outras com vestidos estampados e até uma dupla usando preto. Laura cruza os braços e continua a observar o crescimento da pilha.

Laura depois de vinte e tantos minutos começa a achar tudo aquilo muito chato, antes eram gatos, depois foram vacas e agora são velhas, nunca param de cair e ficam se empilhando, mas e daí, que se danem então, tudo que sobe tem que cair, cada um faz o que quiser da vida, não sou desocupada para perder tempo olhando isso, essa gente só quer chamar a atenção, e volta à sua tarefa de colocar o pernil no forno.

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