“Cinema argentino” é uma abstração tão enganosa quanto “cinema brasileiro”. Nessa abstração cabem o cinemão mainstream de Juan José Campanella, os melodramas familiares de Daniel Burman, as experiências autorais de Lucrecia Martel e de Lisandro Alonso, o cinedenúncia um tanto sensacionalista de Pablo Trapero, além de um bocado de besteirol que não chega ao nosso mercado – e cabe também a filmografia singular, inconfundível, da dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn, que agora nos traz este formidável O cidadão ilustre.
Nos filmes de Cohn e Duprat há sempre uma relação tensa e ambígua entre uma Argentina culta, cosmopolita, europeizada, e uma Argentina profunda, rude e arcaica. Esse conflito se traduz invariavelmente, em termos dramatúrgicos, nos desajustes entre um artista de talento e seu entorno, entre o absoluto da criação estética e as contingências do cotidiano. Entre arte e cultura, em suma, entendida esta última em seu sentido mais amplo, antropológico.
Em função desse enfoque, em cada filme uma arte específica assume o primeiro plano: a pintura em El artista (2008), a arquitetura em O homem ao lado (2009), a literatura em O cidadão ilustre.
O ponto de partida do enredo é, em si mesmo, uma provocação: um escritor argentino, Daniel Mantovani (Oscar Martínez) recebe das mãos do rei da Suécia o prêmio Nobel de literatura e, no discurso de agradecimento, declara que sua produção literária recebe ali um golpe mortal. Canonizado, ele se tornará estéril como uma estátua. A referência a Borges, a quem foi negado o Nobel, é explícita.
Volta às origens
Anos depois, vivendo no luxo de uma casa ultramoderna em Barcelona, Mantovani recebe o inesperado convite da prefeitura de Salas, a cidadezinha onde nasceu e viveu sua infância e juventude, para receber ali uma homenagem e proferir umas palestras. Ele hesita, mas resolve aceitar, voltando às suas origens depois de quatro décadas de ausência. Antes de decidir, ele comenta com sua secretária: “Creio que em toda a minha vida não fiz outra coisa senão escapar daquele lugar”.
O cidadão ilustre é a crônica ao mesmo tempo cômica e aterradora desse embate entre o homem refinado e o meio rústico de onde ele saiu. O olhar divertido e levemente encantado com aquele singelo provincianismo (o desfile em carro de bombeiros por ruas quase vazias, a arquitetura eclética e improvisada dos edifícios, a medalha de cidadão ilustre recebida das mãos da miss local etc.) aos poucos cede terreno para o sentimento amargo da incompreensão e, por fim, para o medo diante da hostilidade crescente, como se o lugarejo inteiro passasse da veneração à ameaça, como num sonho bom que se converte em pesadelo.
Com uma precisão semelhante à de O homem ao lado (a obra-prima da dupla), os diretores modulam sutilmente as mudanças da percepção do meio pelo protagonista. Uma mise-en-scène translúcida e discreta, que nunca se sobrepõe ao drama narrado, mantém em permanente equilíbrio o humor e a melancolia, a contemplação e o suspense. Parece fácil, mas um deslize para um lado ou para outro poderia descambar para a chanchada, ou a caricatura fácil, ou a arrogância superior, ou ainda o melodrama do “artista incompreendido”.
Real e ficção
Em sua literatura, pelo que nos é dado saber, a relação do escritor Mantovani com seu vilarejo natal (inspiração para todas as suas obras) não é nem de idealização nostálgica nem de pura sátira, mas uma difícil posição intermediária, ambígua e instável. É uma ambivalência análoga que Duprat e Cohn parecem buscar – e encontrar – em seus filmes. Em todos, também, a fronteira entre a arte e a impostura aparece como uma linha tênue, quando não borrada.
Em O cidadão ilustre acrescenta-se o tema da transfiguração do real pela ficção. Existe a realidade objetiva? Como o escritor de ficção se relaciona com ela? O que ele extrai do “real” para construir suas fantasias? A todo momento os habitantes de Salas querem identificar os indivíduos e lugares “verdadeiros” por trás das criações de Mantovani. Ele poderia responder simplesmente, como Flaubert: “Salas c’est moi”.