Vamos falar de Dunkirk, o novo filme do controverso Christopher Nolan. Antes, porém, cabem algumas palavras sobre o gênero em que ele se inscreve, o “filme de guerra”.
Do ponto de vista moral, a meu ver, só são defensáveis os filmes de guerra que questionam a própria guerra – qualquer guerra –, que desmontam sua lógica e seus fundamentos, que colocam em crise, de alguma maneira, o próprio ser humano em sua relação com a espécie. Não se trata de uma fórmula única: a história do cinema está repleta dos exemplos mais díspares, de Nada de novo no front, de Lewis Milestone, a Apocalypse now, de Coppola; de Tempo de guerra, de Godard, a Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho; de A grande ilusão, de Renoir, a Nascido para matar, de Kubrick; de Vá e veja, de Elem Klimov, a Pasqualino Sete Belezas, de Lina Wertmüller; de Johnny vai à guerra, de Dalton Trumbo, a Os campos voltarão, de Ermanno Olmi.
O espectador como torcedor
No polo oposto estão os filmes que tratam a guerra como mero espetáculo ou que a exaltam como uma questão de “nós” contra “eles”, heróis versus vilões, transformando o espectador num torcedor mais ou menos acrítico, intelectualmente passivo. O grande perigo, aqui, é a naturalização da guerra, isto é, do assassinato anônimo e sem rosto, sua redução a um videogame inconsequente.
Não se trata de uma questão de maior ou menor competência, de maior ou menor domínio dos recursos do cinema, mas do sentido dessa manipulação. Um exemplo eloquente é O resgate do soldado Ryan, de Spielberg, que começa com uma impressionante (e supostamente veraz) reconstituição do desembarque aliado na Normandia e degenera num libelo patriótico militarista bem ao gosto do sentimentalismo do diretor.
Também Dunkirk se debruça sobre um célebre evento da Segunda Guerra Mundial: a retirada por mar de soldados britânicos e franceses encurralados pelas forças alemãs na cidade de Dunquerque, no norte da França. Pelo drama humano envolvido, por sua amplitude (mais de 300 mil homens resgatados), pela paisagem física, as possibilidades para uma superprodução cinematográfica eram tentadoras – e Christopher Nolan não se fez de rogado. Lançou mão de sua inegável competência para o grande espetáculo e dividiu sua narrativa em três fronts: a terra, o mar e o ar.
Terra, mar e ar
Em terra, milhares de homens amedrontados pelo avanço alemão se acotovelam para entrar nos navios de resgate, amplamente insuficientes. (Diga-se de passagem que os alemães nunca são vistos ou ouvidos.) O foco de Nolan se fecha em dois soldados, um inglês e um francês, amigos acidentais que tentam furar a fila e embarcar a qualquer custo. No ar, três pilotos, dos quais só vemos o rosto parcialmente coberto pelo capacete, manobram seus caças tentando abater os bombardeiros alemães. No mar, desenvolve-se talvez o drama mais interessante: num pequeno barco particular de passeio ou pesca, um homem de meia-idade, seu filho e um amigo deste partem da Inglaterra e cruzam o canal da Mancha para ajudar a resgatar os soldados encurralados na costa francesa.
Acima eu falei em “três fronts”, e não foi por acaso. Para o bem e para o mal, Nolan orquestra essas três ações paralelas com a frieza e a eficiência de um general a comandar uma operação militar. Os três fronts são submetidos a uma tensão permanente – e um tanto artificial, inflada pela música enfática e pelos crescentes efeitos sonoros. A sucessão de clímaces dramáticos, proezas técnicas e êxtases visuais acaba tendo um efeito anestesiante. Não há tempo nem espaço para que o espectador mobilize sentimentos (que dirá pensamentos) mais profundos que os de um jogador de videogame “realista”.
O contínuo estímulo meramente sensorial mal deixa espaço para a mais elementar identificação emocional com os personagens, a ponto de a morte besta de um rapaz de 17 anos passar quase batida em meio à aceleração e ao estrépito generalizados. A estratégia do acúmulo de situações excepcionais, de “ideias brilhantes” – como a dos tiros alemães que furam o casco de um barco encalhado onde soldados esperam a maré subir –, quase sufoca imagens realmente belas, como a do caça já sem combustível planando em silêncio sobre uma praia repleta de soldados e cadáveres, momento de alívio para olhos e ouvidos.
Lembro, entre parênteses, o comentário crítico de Kubrick ao Apocalypse de Coppola: “Parece que cada cena tem que ser mais espetacular e surpreendente que a anterior, até que nos perguntamos: o que vai aparecer agora? O King Kong?” Mas havia lógica naquela loucura, e a maneira que o filme encontrou de questioná-la foi enlouquecer junto.
Objetos de cena
Em Dunkirk, ao contrário, tudo está sob controle, de tal maneira que, depois do discurso patriótico final (de Churchill, lido no jornal por um soldado) e das promessas igualmente patrióticas de um almirante (Kenneth Branagh, com saudades de Henrique V), os próprios mortos estendidos na praia, que deveriam servir de contraponto crítico às palavras grandiloquentes, não chegam a incomodar. São como objetos de cena cuidadosamente espalhados para compor uma imagem espetacular. Não espere aqui a grandeza trágica de Wagner ou de T. S. Eliot. Numa crítica devastadora na revista norte-americana The Baffler, o crítico Jonathon Sturgeon chamou Nolan de “tecnocrata da ação”. Talvez tenha exagerado, mas não muito.