Everett Collection

O escritor John Kennedy Toole (1937-1969)

O escritor John Kennedy Toole (1937-1969)

Somos todos críticos

Cultura

27.02.18

Schadenfreude anacrônica

Muitas pessoas sentem satisfação ao descobrir que algum crítico do passado errou, que previu vida curta aos Beatles, que detestou os impressionistas, que recusou Proust. Para muitos, saber que o crítico estava errado traz uma espécie de Schadenfreude anacrônica – a alegria com a desgraça de alguém de outra época –, apenas por conta de seu ofício. George Orwell, no ensaio “Confissões de um resenhista”, descreve o crítico como um homem “calvo, tem varizes e usa óculos, ou os usaria se o único par não estivesse perdido o tempo todo. Se as coisas estiverem normais com ele, ele está sofrendo de subnutrição, mas se recentemente teve um período de sorte, está sofrendo de ressaca” (tradução de José Antônio Arantes).

Mas somos todos críticos; por mais desagradável que seja, o feedback é inevitável. Do filé improvisado à piada de boteco, tudo recebe um parecer. A reação é relativa: um marceneiro não gostaria de ouvir que suas cadeiras de balanço são desconfortáveis, mas, com exceção disso, uma crítica não lhe terá a importância que tem para um cineasta. Uns não aceitam elogios por desconfiarem de sua sinceridade, outros se enfurecem com críticas negativas por acreditarem-nas invejosas. Vivendo numa época em que qualquer um pode desqualificar publicamente qualquer coisa, convém checar alguns tipos de feedback.

 

O elogio de mãe

Se o elogio de boca própria é vitupério, o elogio de mãe chega perto. A mãe é a única garantia do artista. Uma mãe defende até o filho criminoso, por que não haveria de defender o filho sem talento? Obviamente, existem mães criteriosas, que não elogiam o filho sem um motivo; existem mães comedidas, que temem ser desmascaradas por exaltar obras que não apreciam ou compreendem; existem mães más, inclusive, para quem a excelência não passa de um devaneio. Mas quando aqui falamos em “elogio de mãe” nos referimos não somente à genitora do artista, mas também a quem elogia um trabalho de maneira gratuita. Um apaixonado faz elogios de mãe; um puxa-saco faz elogios de mãe; até um filho faz elogios de mãe. Ama-se a pessoa, não a obra.

O elogio de mãe é facilmente reconhecido, pois desprovido de qualquer análise técnica ou interpretativa; é genérico – um mesmo elogio serve para obras díspares. O elogio de mãe não traz referências externas. E acima de tudo, elogio de mãe não é satisfatório, pois o artista conhece sua maleabilidade. Claro, não podemos nos esquecer dos esforços de Thelma Toole, mãe de John Kennedy Toole, que por muitos anos correu atrás da publicação de Uma confraria de tolos, o hilário romance de seu filho suicida. No geral, entretanto, o artista deve ficar grato à pessoa que lhe fez o elogio ad hominem, mas não pelo elogio em si. O elogio de um estranho é sempre mais confiável.

 

Olhos ansiosos de mendigo

Temperado com observações técnicas judiciosas, o elogio de mãe se transforma em crítica positiva. Diante do autor, o colega ferino e implacável tampa seu frasco de veneno e adota o melindre como forma de expressão. Ele lê um conto ou um poema no boteco, pelo celular, após uma dúzia de caipirinhas, enquanto o autor o observa com o olhar ansioso do mendigo que acredita na benevolência do próximo transeunte, alegando desejar apenas uma opinião sincera. Mas o colega já sabe: essa opinião sincera deve ser elogiosa, nada mais.

Ainda por cima, deverá ressaltar a sonoridade de um verso ou os personagens profundos, o bom uso do hipérbato ou da metalinguagem, a influência de Leminski ou de Sebald. Caso contenha ressalvas, precisam ter alguma utilidade prática para o autor. Diante da falta de qualidades evidentes, será necessário burilar um comentário sagaz e criterioso que encerre a conversa.

A verdade infausta é que todos somos assim, todos já fizemos isso. Não é muito fácil se arriscar a ferir um colega. Entre eles estão também os resenhistas receosos de perderem seus contatos, ou os professores de escrita criativa que não desejam desmotivar os alunos, pois depende das mensalidades. No entanto, por irônico que pareça, uma obra elogiada pode, de fato, conter virtudes. De acordo com Elizabeth Hardwick, “um gênio pode até ir para o túmulo sem ter sido lido, mas dificilmente irá sem ter sido elogiado”. Só não deixa de ser suspeito que suas qualidades sejam sublinhadas na frente dele próprio.

 

Um golpe de alabarda

Por outro lado, não há coleguismo que sobreviva a uma crítica negativa; se sobreviveu, não tenha dúvidas: trata-se de amizade. A crítica negativa é uma bordoada na nuca. É técnica e elegante, desprovida das gentilezas interesseiras; é a que mais incomoda, pois feita com autoridade – por editores, escritores, jornalistas, críticos, membros de bancas de avaliação, acadêmicos, leitores confiáveis. No romance Zuckerman libertado (1981, tradução de Alexandre Hubner), de Philip Roth, o famoso escritor Nathan Zuckerman é encurralado por Alvin Pepler, um stalker que o obriga a ler um parágrafo escrito à mão num caderninho de espiral. “Está ótimo. Bom começo”, comenta Zuckerman, tentando sair dali. Pepler não fica satisfeito com este feedback: “Eu quero a verdade”, replica ele. “Não me venha com conversa fiada, por favor. Onde foi que eu errei?” O romancista admite ter achado o parágrafo verborrágico e, hesitante, começa a criticar o estilo.

Contrariado, o stalker negocia, pede-lhe que esqueça o estilo, que se concentre na reflexão do texto. Zuckerman obedece, mas sua opinião continua desfavorável. Isso atinge Pepler como “um golpe de alabarda”. Nervoso, ele bate o caderninho febrilmente na mão, até guardá-lo no bolso “como se estivesse cravando um punhal no peito”. Assustado, analisando o policiamento em volta, o romancista ainda tenta se livrar do fardo; mas Pepler insiste com uma esperança atormentada. Ao fim, Zuckerman não encontra nada de elogiável no texto e o stalker se enfurece, atacando, com os olhos ardendo, a reputação do escritor.

Esta reação é a mais ordinária, não importa a experiência e a fama do criticado. Num âmbito pessoal, ninguém é obrigado a aceitar a crítica, mas num âmbito artístico o criador, especialmente o performático, precisa de frieza; aceitar as punhaladas como se brisa fossem. A verdadeira crítica negativa é sincera e desprovida de ódio; se carrega rancor, é crítica destrutiva; mas quando bem-feita tem muito a ensinar a quem a recebeu. Os autores precisam aprender a olhar para a crítica negativa com leveza, precisam se divertir com ela, precisam usá-la como cartão de visita, precisam seguir o exemplo dos produtores de Aquarius e dos editores de Lolita. Para a grande arte, a crítica negativa pode ser positiva.

 

Motivo para impeachment

Como dito, a crítica negativa, quando contaminada pelo rancor, se transfigura em destrutiva; o objetivo é humilhar ou ofender o artista por meio de sua obra. Geralmente é praticada por oponentes de um artista, uma estética ou uma ideia. Millôr Fernandes, a respeito de Brejal dos Guajas (1985), novela do ex-presidente José Sarney, afirma que “não se trata de um caso de má, ou até mesmo péssima, literatura, de uma opinião malévola ou discutível. Em qualquer país civilizado Brejal dos Guajas seria motivos para impeachment.” Seu objetivo era humilhar o presidente corrupto que entrara para a Academia Brasileira de Letras.

Mas a destruição é maior se a vítima for admirável. O personagem Alceste, da peça O misantropo (1666, tradução de Bárbara Heliodora), de Molière, não aguenta mais os sonetistas ruins que lhe pedem uma opinião sincera. Insociável, é incapaz de compreender o estrago causado nos poetas que o escutam. “Por que se ofende ele? O que quer me dizer? / Diminui-lhe a glória não saber escrever? (…) / O tenho por bom homem em todo o conjunto, / Homem de mérito, de honra e coração, / Tudo o mais que quiserem; mas poeta, não.” Após muita insistência de Oronte, Alceste esculhamba com seu soneto: “Na verdade, senhor, deve jogá-lo na privada / Tomou por modelo, senhor, horrores tais / Que as suas expressões não soam naturais”. Como Pepler, Oronte se ressente com a estocada e tenta negociar.

A crítica destrutiva é um teste de resiliência, pois não existe réplica possível. Uma resposta apenas evidencia o sangramento: eis a declaração de vitória do oponente. A vontade de responder será incontrolável como uma sarna; será preciso desligar o celular, tomar comprimidos para dormir ou, se for o caso, esperar amarrado ao pé da mesa. Não há outra solução, a única maneira de lidar com a crítica destrutiva é o silêncio.

Ela demanda talento estilístico. Sem a verve sarcástica, a crítica destrutiva se transforma no insulto gratuito, mais facilmente ignorável, pois mal escrito e sem critério – estocadas aleatórias que só atingirão quem se permitir proximidade suficiente. Qualquer usuário de internet está habituado com a descompostura abundante nos memes, nos chats, nas caixas de comentários. A ofensa aberta é o único recurso dos babacas e dispensa reações do ofendido; além de inútil, eventualmente outro hater haverá de defendê-lo com a mesma linguagem de seu desafeto. Mas, por via das dúvidas, alguns meses num curso de autodefesa não farão nenhum mal.

 

A memória do sábio

Muito pior que qualquer feedback é a sua falta. Não existe ofensa tão corrosiva quanto a indiferença e o esquecimento; e ainda assim, é isso o que prevalecerá. Diz o Eclesiastes que “a memória do sábio não é mais eterna que a do insensato, pois que, passados alguns dias, ambos serão esquecidos. Mas então? Tanto morre o sábio como morre o louco!” (2,16). A luta de qualquer criador, portanto, não é contra o feedback negativo, sequer contra o oblívio, mas contra o perecimento precoce. Por isso, a melhor reação contra qualquer comentário desagradável é o estoicismo; lembrar que o artista cria para o mundo, portanto não vale a pena se irritar com as opiniões recebidas; e lembrar que, assim como a fama, o comentário também perecerá.

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