O diretor Fernando Weller

O diretor Fernando Weller

Baladas do lado sem luz

No cinema

06.04.18

Arábia Em nome da América estão em cartaz nos cinemas do IMS Paulista e do IMS Rio.

 

Em momentos de trauma político e social como o que estamos vivendo, o cinema pode servir como evasão, válvula de escape (lembremos de Hollywood durante a Grande Depressão), mas pode também aprofundar o conhecimento e a reflexão sobre o real, além de manter viva a sensibilidade que nos resta e que os tempos brutais tendem a embotar. Dois filmes brasileiros que estão entrando em cartaz realizam com brio essa nobre vocação: o road movie proletário Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans, e o documentário Em nome da América, de Fernando Weller.

As primeiras imagens de Arábia acompanham, num travelling fluente, um adolescente cabeludo (Murilo Caliari) que desce de bicicleta uma sinuosa estrada de montanha, ao som de uma balada country de Jackson C. Frank. Não fosse pela vegetação tropical e pela precariedade da pavimentação, poderíamos estar diante de um filme francês pós-Nouvelle Vague ou de um indie norte-americano.

Jogada essa isca, deliberadamente ou não, para capturar o público habituado a certo “cinema de arte”, o filme desce em seguida para uma dimensão social bem mais crua, substantiva e sem glamour. Há um menino que tosse num quarto escuro, cuidado pelo irmão mais velho (o ciclista da sequência de abertura), André, que lhe aplica uma inalação caseira. Acabou o remédio, acabou o leite, o parapeito da janela tem uma camada espessa de fuligem: estamos no bairro industrial de Ouro Preto, diante de uma fábrica de alumínio que produz barulho e fumaça.

Mas não é a história desses dois irmãos abandonados pelos pais e pela sorte que Arábia vai mostrar, e sim a de Cristiano (Aristides de Sousa), operário internado em coma no hospital local depois de sofrer um colapso. Ao recolher roupas e pertences de Cristiano para levar ao hospital, André encontra um caderno em que o operário escrevia suas memórias.

Inventário de opressões

O filme passa a narrar então, como num longo flashback, os dez anos anteriores na vida de Cristiano, uma trajetória que passa por uma infinidade de experiências difíceis: prisão por assalto, vida de andarilho, trabalho na construção de estradas, na colheita de mexericas, no transporte de cargas, na indústria têxtil, na metalurgia. Mais do que um mero inventário de situações de opressão e exclusão, vale como uma aula prática de economia política, do ponto de vista de quem está na base da pirâmide social.

A predominância de planos médios com a câmera parada nas cenas em que os diálogos esclarecem dinâmicas de exploração faz lembrar em alguns momentos o cinema materialista dialético de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, em que pesem as diferenças enormes em outros aspectos. A história de amor do protagonista com uma colega da tecelagem (Renata Cabral) serve como impulso para que ele transcenda sua banalidade cotidiana, mas mostra ao mesmo tempo seus limites materiais e, digamos, espirituais. Não é uma história romântica.

A locução em off, na voz do próprio personagem, faz os nexos entre as sequências e registra seu aprendizado técnico, moral e político. Alguns diálogos, não isentos de um humor amargo, colocam em evidência preocupações do mundo do trabalho, no campo e na cidade, que passam longe do nosso cinema habitual: os piores lugares para se dormir quando não se tem uma cama, as cargas mais difíceis para carregar e descarregar de um caminhão, a melhor época para colher mexericas.

Que não se pense, pelo que foi dito, que a preocupação com o “conteúdo” implica descuido ou desinteresse na construção visual do filme. Os enquadramentos, bem como a encenação ilusoriamente “documental”, o ritmo da montagem, a articulação com a locução e com a trilha sonora, tudo conflui para expressar uma visão orgânica e lúcida do universo retratado. Não há firula, mas há beleza, e especificamente cinematográfica, sobretudo em momentos como o do atropelamento de uma pessoa à noite, numa estrada deserta, ou do instante de surdez do operário na metalúrgica, que em silêncio, na penumbra rasgada pelas labaredas dos fornos, se assemelha a uma visão do inferno. Uma verdadeira epifania às avessas.

Em tempo: no último festival de Brasília, Arábia ganhou os prêmios de melhor filme, montagem (Luiz Pretti e Rodrigo Lima), trilha sonora (Francisco Cesar e Cristopher Mack) e ator, para Aristides de Sousa, que foi revelado ao viver seu próprio papel, o de um rapaz no limiar da criminalidade na periferia de Contagem, no longa anterior de Affonso Uchôa, o documentário A vizinhança do tigre.

Em nome da América

Em 1962, ainda sob John Kennedy, o governo norte-americano, no bojo da célebre Aliança para o Progresso, criou um programa de Voluntários da Paz (Peace Corps), jovens enviados a países pobres das Américas supostamente para fazer assistência social. Por maior que fosse o idealismo da maioria dos jovens voluntários, o documentário investigativo Em nome da América mostra que o principal objetivo do programa era controlar os movimentos sociais e afastá-los do “perigo comunista”.

Estávamos no auge da Guerra Fria, e um dos locais estrategicamente escolhidos para receber esses rapazes e moças de boas famílias foi o interior do Nordeste brasileiro, onde antes do golpe de 1964 começavam a florescer as ligas camponesas de Francisco Julião e a luta pelos direitos do trabalhador rural. Temia-se que a região se tornasse “uma nova Cuba”.

Com grande tenacidade, e um admirável trabalho de pesquisa de documentos e de imagens, o filme não deixa de fora nenhum aspecto importante dessa inusitada experiência, que atravessou a maior parte dos anos 1960 e início dos 1970. A geopolítica mundial do período, as tensões sociais no campo brasileiro, a truculência dos latifundiários, o papel ambíguo da igreja católica, a infiltração da CIA, as condições seculares de exploração do trabalho e de precariedade da vida sertaneja, o choque cultural representado pela chegada dos jovens ianques, o aprendizado recíproco: tudo isso é abordado de modo claro e articulado no documentário, que transcende amplamente a mera “denúncia”.

A par da pesquisa de material de arquivo – que inclui filmes que registram a atuação do Peace Corps no Brasil, na Colômbia e na Jamaica –, os realizadores localizaram ex-participantes do programa, foram aos Estados Unidos entrevistar alguns deles, registraram a volta de outros ao Nordeste e o seu reencontro com velhos amigos brasileiros, cotejando a situação atual com a de meio século atrás. O mais triste, ao ver esse excelente documentário (premiado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado), é constatar que, descontadas algumas mudanças de superfície, a realidade de fundo permanece a mesma, com os atuais ruralistas ocupando o lugar dos antigos coronéis latifundiários. Os tratores podem ter se modernizado, mas a opressão e a brutalidade são as mesmas.

Melhores do ano

O Cinesesc, em São Paulo, exibe até o próximo dia 25 boa parte da melhor produção nacional e internacional do ano passado, na 44ª edição do Festival Sesc de Melhores Filmes. A seleção é resultado da votação de 120 críticos de todo o país e de cerca de 11 mil internautas, em sua maioria frequentadores do cinema. É uma ótima oportunidade para ver ou rever filmes relevantes numa das melhores salas de exibição da cidade.

Na sessão de abertura da mostra, no último dia 4, foi exibido o inédito Aos teus olhos, de Carolina Jabor, programado para entrar em cartaz no circuito na próxima quinta-feira, 12 de abril. Premiado no Festival do Rio do ano passado, o filme aborda um tema atualíssimo – uma suspeita de pedofilia por um professor de natação que logo degenera em linchamento virtual peles redes sociais e grupos de whatsapp – e atesta o amadurecimento artístico da diretora, que trafega por um terreno delicado e consegue manter o tempo todo a tensão e a dúvida, graças em grande parte ao ótimo elenco (Daniel de Oliveira, Marco Ricca, Luisa Arraes, Malu Galli).

Na votação do Cinesesc, os principais premiados foram, entre os nacionais, A Glória e a Graça, de Flávio Tambellini (melhor filme, para o público), Como nossos pais, de Laís Bodanzky (melhor filme, para a crítica), Arpilleras, de Marina Calisto (melhor documentário, para o público), Martírio, de Vincent Carelli (melhor documentário, para a crítica), e Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé (melhor direção, para público e crítica).

Entre os estrangeiros, o público escolheu como melhor filme Com amor, Van Gogh, de Dorota Kobiela e Hugh Welchman, e a crítica optou por Corra!, de Jordan Peele.

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