Um filme cabo-verdiano é um corpo mais do que estranho no circuito exibidor brasileiro. Salvo engano, o último longa-metragem de ficção do arquipélago lusófono a aportar por aqui tinha sido O testamento do Senhor Napumoceno, de Francisco Manso, lá se vão vinte anos. Agora é a vez do surpreendente Djon África.
Co-produção Brasil-Portugal-Cabo Verde, o filme de João Miller Guerra e Filipa Reis conta de maneira original uma história clássica, quase arquetípica, a de um homem em busca de seu pai desconhecido, de suas raízes ancestrais. O homem, no caso é o jovem negro Miguel (Miguel Moreira), que mora com a avó na periferia de Lisboa e vive de pequenos expedientes (furtos em lojas, bicos como pedreiro). Um belo dia alguém cruza com ele na rua e diz ter conhecido seu pai, “que era a sua cara”. É o que basta para o rapaz resolver partir para o Cabo Verde, para onde o pai foi deportado de volta quando ele ainda era um bebê.
Narrativa bamboleante
Dependendo do enfoque e do tratamento escolhidos, a jornada de Miguel, que gosta de se apresentar como Djon África, poderia ser uma parábola edificante, um melodrama familiar, um road movie pitoresco. Mas Djon África não é nada disso, embora tenha um pouco de todas essas coisas. Sua narrativa solta, bamboleante, aberta ao acaso, parece mimetizar a disposição do próprio personagem, que apesar de ter um objetivo (encontrar o pai) parece se deixar levar pela vida e pelos acidentes de percurso.
Miguel é um personagem singular, ao mesmo tempo transparente e indecifrável. Em Cabo Verde uma garota pergunta o que ele fazia na vida em Portugal. Sua resposta vem com um cândido sorriso: “Nada”. É assim, quase flutuando por entre as pessoas e os lugares, que ele se mete nas mais variadas situações: embriagado de grogue (uma aguardente local) numa festa, vai para a cama com uma garota e acorda numa casa desconhecida, sem um tostão no bolso; em outra ilha, conhece uma velhinha solitária e passa a morar com ela, cuidando de sua roça e de suas cabras. É como se Miguel vivesse as várias existências que se apresentam à sua frente.
Nesse percurso episódico, ziguezagueante, os diretores parecem às vezes a ponto de perder o foco narrativo, entregando-se ocasionalmente à contemplação da insólita paisagem vulcânica circundante, mas o fio da meada é retomado de maneira inesperada perto do final, em que uma notícia vinda de longe lança uma nova luz ao drama de Miguel.
E o último plano do filme, com a câmera fixa mostrando o protagonista numa movimentada calçada de pedestres (em Portugal? em Cabo Verde? quase não importa), é um desfecho poético e inquietante por conta de um detalhe que não vou revelar aqui e que mostra como os diretores sabiam desde o início aonde queriam chegar.
Os invisíveis
Em contraste com a narrativa solta e distendida de Djon África, está em cartaz um filme que é tensão do começo ao fim: o alemão Os invisíveis, de Claus Räfle. Narra-se ali a aventura de quatro jovens judeus que viveram clandestinamente em Berlim sob o nazismo, durante a Segunda Guerra Mundial. Diz um letreiro final que sete mil judeus tentaram permanecer escondidos na capital alemã e que só mil e quinhentos sobreviveram, entre eles os quatro retratados em Os invisíveis.
Três materiais distintos compõem a estrutura do filme: a encenação do drama dos protagonistas, com atores desempenhando seus papéis, alterna-se com depoimentos dados hoje pelos personagens reais e com imagens documentais de Berlim na época da guerra. São aventuras distintas, pois cada um encontra uma maneira de esconder sua identidade, de se tornar invisível.
Como costuma acontecer nesse tipo de construção híbrida, o substrato documental de certo modo solapa a construção ficcional, revelando o que há nela de falso, de mentirinha, de faz-de-conta. Não que não haja integridade e competência nessa reconstituição, mas é que a realidade bruta sempre se impõe de modo mais acachapante.
Ainda assim, algumas cenas são de uma força extraordinária, como aquela em que um soldado russo desconfia de dois rapazes que se dizem judeus e faz com que eles recitem uma oração em hebraico. A cena termina com os três abraçados, chorando. O russo também era judeu. E não é preciso ser judeu para se sentir incluído naquele abraço.
Talvez até o impacto desse filme, que é uma espécie de manual de sobrevivência em tempos impossíveis, seja intensificado no Brasil de hoje, em que a violência de viés fascista se tem espalhado, sobretudo contra os mais vulneráveis. Resgatar valores de compaixão e solidariedade como os exaltados em Os invisíveis talvez seja tão imperioso aqui e agora quanto na Berlim da época de Hitler.