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Chico,
Menos amigos, menos programas, menos angústia, menos euforia: menos sede. Você me parece bastante hidratado em sua rotina, tempo para ler, foco, calma. Eu, ao contrário, sigo domando leões no Rio ou do outro lado do mundo. Eu quero ser Chico Mattoso em 2013.
Macau até agora? Nunca tive um jet leg tão destruidor. Se não descanso no quarto, quando saio meu cérebro é que não para. Isso aqui é um pequeno e simbólico apêndice de terra onde tudo está na sua cara: um quarteirão resume séculos de colonialismo e uns poucos e selvagens anos de globalização em arranha-céus de néon emparelhados com sobrados portugueses e ruelas medievais. E ainda tem a China, e a grana da China no topo, só pro panorama ficar completo. Se eu tivesse que resumir a Terra para um marciano, falaria de Macau.
E o lugar não só é uma aula da história, mas uma aula sobre o contemporâneo e o simulacro. Aqui há uma imitação da imitação de Veneza que existe em Las Vegas. Fica no Venezian, que é o maior cassino do mundo e fatura o mesmo que Las Vegas inteira a cada ano. É a sexta maior construção já feita pelo homem, com 980 mil metros quadrados, 3 mil quartos e não sei quantos canais cheirando a cloro com gondoleiros filipinos cantando “o sole mio” sob um céu artificial em perpétuo crepúsculo. A Europa também está no MGM, onde há uma mini-Lisboa com uma Estação do Rossio inteira dentro. E no fajuto cais de pescadores, onde vemos um anfiteatro romano, uma vila mexicana, prédios art-déco de Miami e mais uma imitação de Portugal e outra da própria China.
Chico, em quantos séculos ou décadas as pessoas vão parar de conseguir diferenciar essas cópias dos prédios históricos da cidade? Até que ponto uma igreja em estilo colonial português na Ásia, como a Igreja da Sé, onde entrei e ouvi Roberto Carlos e sua cantilena religiosa pelas caixas de som, é mais autêntica do que qualquer um desses monumentos ao kitsch? E ainda: dá pra relacionar a sensação que um português recém-chegado a Macau no século 18 tinha ao encontrar o calçamento copiado das ruas de Lisboa com a nossa olhando essas novas cópias no século 21? O que faz da cópia coisa orgânica, autêntica e “real” (insira uma catarata de aspas aqui)?
Que mais? Outro dia aconteceu algo extraordinário.
Era quase manhã, estava eu sozinho na porta de um bar esperando um novo amigo, cineasta português, sair. Na mesma calçada havia uma menina que começou a ser provocada por dois sujeitos de forma bastante estúpida. Eu, com a pureza dos bravos e suicidas, pedi pro pessoal take it easy que não era assim que se falava com uma mulher, sejamos educados etc. Rapidamente o evento transformou-se num embate diplomático em pelo menos quatro línguas, com empurrões e promessas de socos e pontapés sendo distribuídas. Com muita dificuldade, conseguimos colocar a menina em segurança em um desses hotéis com barras de ouro e diamantes no chão envidraçado. Mas continuávamos do lado de fora, e os reforços da horda inimiga chegavam com sangue nos olhos. A saída foi honrosa. No meio da confusão, meu amigo conversou em chinês com o motorista de uma limousine, que nos tirou dali num arrancar de pneus. Comemoramos nossa fuga matando o resto da garrafa de champanhe ainda gelada no balde. Depois, tomamos o café da manhã dos campeões numa ruela meio decrépita ao lado dos muito velhos que acordam muito cedo, na esquina onde está a pensão capenga onde Wong Kar-wai filmou Amor à Flor da Pele. Sopinha, lamen, carne picante, café com leite.
Preciso de água, Chico.
Abrazos,
JP
P.S.: Um vídeo curtinho com imagens que consegui fazer nesses dias: