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Meu querido Dapieve:
Só pra complementar a carta anterior, gostaria de um pitaco sobre o caldo de cultura onde cresce (?) o espécime que vive na Tijuca. Hoje, o bairro vai do Estácio ao Grajaú e até a Usina, na subida do Alto da Boa Vista, no que é chamado, um tanto pomposamente, de Grande Tijuca. Nesse sentido, a Tijuca é uma espécie de Conceição: “tentando a subida, desceu“. As raras casas que sobraram e os outrora simpáticos prédios de três andares, com muretas de um metro e portãozinho, ganharam assustadoras grades, balas entram pelas janelas (eu tenho duas guardadas), a praça Saens Peña parece uma fortaleza gótica – não ficarei admirado se pintar o fosso com jacarés -, pra não falar da extinção do pequeno comércio, destruído pelos narcoshoppings, onde autômatos andam de um lado pro outro, caem no conto da “promoção”, comem mal, e, estranhamente, divertem-se. Não por acaso, entre a juventude, a maioria dos robobos são apelidados de piriguetes e strondas… A Tijuca, originalmente tijuco (pântano), volta às origens, só que num lodaçal pós-moderno de sucata colorida, disfarçada em inúteis bens de consumo – em bom português, lixo pra deslumbrar trouxa.
Vamos para Copacabana. O inesquecível para mim não era o mar, mas a fragrância, misto de perfume e ânsia, que sentia ao sair do Túnel Novo. Menino precoce, sempre associei aquele cheiro a mulheres bonitas de perna grossa.
Lembro que a família estava reunida em um almoço domingueiro, na rua dos Artistas, em Vila Isabel, quando meu tio mais novo disse, em tom de quem não admitiria palpites contrários:
– Semana que vem, vamos mudar para o Leme, em Copacabana.
Minha avó materna, Dona Noemia, mulher fortíssima que nunca vi ter uma crise nervosa, ficou pálida e benzeu-se, como se tivesse ouvido que titio iria, com a esposa e minha priminha Valéria, para Sodoma. O choque produzido pela notícia foi tremendo. Eu catava cochichos pelos cantos: “… apartamento perto de áreas de meretrício” (o Beco da Fome). De noite, perguntei à minha saudosa mãe o que era meterício, e ela – acontecia diariamente – passou mal, ameaçou desfalecer, chamaram o Dr. Fandor, a rotina.
Durante essas crises, meu pai permanecia, Lincoln no canto da boca, com a cara enfiada na página das corridas de cavalos. Era asmático e fumava compulsivamente mata-ratos, o que explicava a quase permanente ambulância do SAMDU (Serviço de Assistência Médica de Urgência) na porta. Ele quase não falava, mas me advertia em voz cavernosa:
– Eu queria ser piloto de avião, não estudei, sou escriturário do Iapetec.
A primeira ida à mítica Zona Sul foi catastrófica. A desculpa era visitar meu tio, que já se mudara, mas papai queria mesmo era ver uma demonstração da FAB. Ora, com a asma dele e mamãe sempre doente, reinava a mania do agasalho. Assim, fui pra Copacabana envergando calças bombachas de flanela espessa, camiseta, e blusa de mangas compridas por cima. Durante o show aéreo, olhei para cima e achei que meu pai estava chorando! Sob o sol e as roupas, minha emoção soltou-se, junto com o tradicional e muuiito repetitivo grito de guerra:
– Pai-ê! Tô apertado pra fazer cocô!
Se alguém achar que isso foi ruim, é porque ainda não contei nossas idas ao Posto 6, “mar parecido com o de Paquetá”. Íamos inteiramente vestidos. Dois bondes até a Central e um lotação. No começo da areia, tirávamos calças, meias, sapatos, camisetas, camisas, e agasalhos leves de shantung. Quando ficava só de short (sunga era coisa de fresco), papai resmungava:
– Frio desgraçado!
Abria uma bolsa verde da Panair, tirava um frasco escuro de Eparema e bebia uma senhora talagada no gargalo. O vidro estava cheio de cachaça com vermute… Os shorts eram patéticos, com padronagens coloridas e “cintinhos” falsos, com dois botões. Pra quem achava sunga coisa de viado… Não vale a pena descrever a volta pra Vila, na qual eu invariavelmente vomitava. A única lembrança boa que guardei desse inferno foi uma carrocinha, parecida com a de pipoca ou de algodão, que desapareceu. Vendia doces árabes.
Entrou em campo a fase de Paquetá e só voltei, adulto, em Copa, pra beber com os amigos, e me meter em confusão, principalmente com primo Dininho, o pianista Chiquinho Botelho, e outros que não citarei porque vai acabar em divórcios. Grandes aventuras, com as consequências previsíveis. Vou dar uma palinha, de leve, cantarolando:
Copacabana, a Surfistinha do Mar!
Lararará, etc.
E o grande final, parodiando a famosa canção:
Depois do amor sob o luar,
Binotal 1000 miligramas hei de tomar…
Hoje, já não me arrisco naquelas águas. Navego – ou sou impulsionado – num barquinho de jornal, rio Maracanã adentro, rumo ao Coração das Trevas.
Abraço fraterno,
Aldir
* Na imagem da home que ilustra este post: a pedra da Gávea, o morro Dois Irmãos e as praias de Ipanema e Leblon vistos da praia do Arpoador, Rio de Janeiro, 1952 (foto de José Medeiros/acervo IMS)