O mundo se divide entre aqueles que acreditam que o mundo se divide em duas partes e os que acreditam que tudo é muito mais complicado do que isso. Ao dizer que sou das que pensam que “tudo é muito mais complicado do que isso”, já estou admitindo uma primeira divisão, me colocando de um certo lado, o daqueles que não acreditam que o mundo se divide em duas partes. Ou seja, uma contradição em termos. Posto isso, se eu fosse dessas que acredita que o mundo se divide em duas partes, diria que no momento há debate entre aqueles que acreditam que devem se endereçar ao governo interino, reivindicando representação de mulheres e negros nos ministérios, e aqueles que acreditam tratar-se de nem se dirigir ao governo interino, porque qualquer tipo de interpelação só pode ser feita partindo da premissa da sua legitimidade.
Esteja de que lado você estiver, é impossível ignorar o problema da representação na não representatividade do ministério do governo interino. O jogo com o verbo representar é necessário e segue a mesma linha do argumento anterior: o mundo se divide entre os que acreditam na possibilidade de representação e os que não acreditam. Para os segundos, sempre mais melancólicos e menos ingênuos, uma ou duas mulheres salpicadas ali naquela foto repleta de homens brancos de ternos escuros não resolveria o problema da representação. Entregar a presidência do BNDES para uma mulher, a economista Maria Silva Camargo, não muda o problema da representação, e vir a ter a excelente advogada Flavia Piovesan na secretaria de Direitos Humanos também não.
A gritaria mundial (ver links abaixo) ouvida depois do anúncio do ministério masculino serviu principalmente para reforçar o que já se sabia: a crise política era também e principalmente uma expressão de misoginia, explicitada na imagem da felicidade dos homens brancos na tomada de poder. Um regime democrático depende da representação de infinitas singularidades, impossíveis de estar contidas em qualquer estrutura representativa, mas possíveis de não serem totalmente ignoradas como se não existissem.
Deputados e senadores eleitos já estavam sob a mira da crise de representação desde que as manifestações de rua de 2013 se ergueram com os cartazes “Fulano não me representa”, sendo fulano qualquer “X” cuja pretensão seja falar em meu nome, mesmo que “X” fosse uma mulher, branca, heterossexual, professora universitária como eu. A crise é de representação também se considerarmos a judicialização da política, que leva ao poder Judiciário – não eleito, mesmo que eleição pudesse garantir representação – aquilo que seria da ordem do Legislativo ou do Executivo.
A outra gritaria tão alta quanto a ausência feminina foi contra extinção do ministério da Cultura – prestes a virar um puxadinho comandado por uma mulher, numa tentativa vã de solucionar a tal crise de representação. O fim do ministério da Cultura talvez seja crime ainda mais grave, agudo e irreversível. Cultura, vale repetir, não é atividade artística ou patrocínio para shows; cultura é, entre outras tantas coisas, aquilo que nos faz diversos, é justamente aquilo que não se representava na foto da posse do presidente interino. Trata-se, portanto, de pensar além da cota identitária – uma mulher, um negro, um indígena – para refletir diversidades culturais não compreendidas sem mulheres, sem negros, sem indígenas ou, em uma palavra, sem cultura.
Se, como argumenta o psicanalista francês Gérard Wajcman (2012), o século XX é o século dos objetos, e o objeto que melhor representa o século XX é a ruína – “um objeto bem formado, conforme à compreensão comum que se tem do objeto, que ocupa um lugar no espaço, pode ser produzido, ser acessível aos sentidos, ainda que, na prática, este se apresente como ligeiramente desestruturado” – posso dizer que as ruínas do século XX não aparecem na foto por que são, de forma paradoxal, o principal objeto da imagem. As ruínas do governo interino, no entanto, estão inscritas e espalhadas pela rede:
New York Times: “Piorando a crise política no Brasil”
Los Angeles Times: “No Brasil pós-impeachment, o novo ministério conservador é composto de 100% de homens”
Forbes: “Novo presidente do Brasil, Michel Temer preenche ministério apenas com homens”
The Guardian: “O sistema político que tem de estar em julgamento, não uma mulher”
The Guardian: “Muita testosterona e pouco pigmento: a velha elite brasileira dá um golpe na diversidade”
Frankfurter Allgemeine: “O gabinete dos homens brancos“