Por um feliz acaso, estão chegando aos cinemas praticamente ao mesmo tempo dois filmes de suspense de cineastas brasileiros da nova geração. Por vias diferentes, eles arejam e revitalizam esse gênero tão pouco cultivado entre nós. A boa notícia é que ambos são ótimos.
Mate-me por favor, longa-metragem de estreia da carioca Anita Rocha da Silveira, que acaba de entrar em cartaz, talvez possa ser definido como um suspense juvenil, dada a faixa etária de seus personagens, o espectro de suas referências e a agilidade pop de sua abordagem.
Já O silêncio do céu, do paulista Marco Dutra (de Trabalhar cansa e Quando eu era vivo), que estreia no próximo dia 22, é inequivocamente um filme maduro, um suspense tão adulto que leva o gênero à fronteira com a tragédia.
Mate-me por favor
Em Mate-me por favor, rapazes e garotas – principalmente garotas – de um colégio de classe média da Barra da Tijuca vivem seu cotidiano adolescente sob a sombra de uma série de crimes sexuais cometidos, ao que parece, por um único psicopata.
A proeza maior da diretora é equilibrar o fio tenso do suspense e do mistério com o dia a dia prosaico de colegiais, com seus típicos problemas e preocupações (as intrigas amorosas, as curiosidades eróticas, as rivalidades, a busca de identidade e afirmação). Um jogo permanente entre tensão e dispersão, que, na mise-en-scène, se expressa numa oscilação entre uma abordagem naturalista e a inserção de momentos de fantasia e estilização, quase clipes independentes enxertados no corpo da narrativa (um culto evangélico noturno e moderninho, uma coreografia funk no pátio do colégio, um rosto que olha diretamente para a câmera e golfa sangue pela boca).
O real e o imaginário se entrecruzam numa espécie de entre-lugar criado pelo filme e expresso de modo muito feliz em sua insólita geografia. É, para começar, um filme carioca em que não se vê o mar. A maior parte de sua ação externa se passa num matagal e descampado entre a montanha e os fundos dos edifícios residenciais da Barra. É como se fosse um espaço vazio em que se projeta o imaginário atormentado daquelas meninas.
Em particular de uma delas, Bia (a excelente Valentina Herszage), que se torna obcecada pelos assassinatos em série a ponto de se identificar com as vítimas: a cena em que ela beija a boca ensanguentada de uma delas, agonizante, a pretexto de fazer respiração boca a boca, é uma das mais fortes do filme. Com seus silêncios perturbadores, suas atitudes imprevistas, seu rosto de esfinge, Bia é a imagem condensada da adolescência e seu mistério irredutível.
Com uma habilidade surpreendente para uma estreante em longa, Anita Rocha da Silveira articula os códigos de pelo menos dois gêneros, os teen horror movies americanos (com uma piscadela aos filmes de mortos-vivos) e o giallo italiano, com sua vistosa estetização do sanguinolento.
Embalada por funk carioca, canções românticas de gosto duvidoso e um horrendo gospel pop, essa moçada que não costuma aparecer no nosso cinema busca decifrar o mundo e inserir-se nele à sua maneira.
É um filme decididamente feminino. Ainda que sejam vítimas – reais ou potenciais – da violência masculina, é a força do desejo e do imaginário dessas meninas que move tudo.
O silêncio do céu
Se a violência contra a mulher perpassa Mate-me por favor, toda a ação dramática de O silêncio do céu gira em torno de um estupro, apresentado de modo brutal já nas primeiras imagens. Adaptação de um romance do argentino Sergio Bizzio, o filme se passa em Montevidéu (originalmente seria em Buenos Aires) e conta com elenco de três países (Brasil, Argentina e Uruguai), embora seja uma produção brasileira.
Uma possível sinopse sem spoiler seria a seguinte: em sua casa num bairro de classe média de Montevidéu, uma estilista de moda brasileira, Diana (Carolina Dieckmann), é imobilizada e estuprada por dois homens. Seu marido, o roteirista de televisão Mario (Leonardo Sbaraglia), chega em casa a tempo de presenciar o ato, mas não consegue agir. Sua mulher não sabe que ele viu tudo. Ela não conta nada a ele, ele não conta nada a ela.
A partir desse acontecimento bruto – e do silêncio em torno dele – se desenvolve, como que em espiral, uma tensa e intrincada narrativa, que ora assume o ponto de vista de Mario, ora a de Diana. Esse deslocamento do olhar, bem como o hábil desenvolvimento da dialética entre o mostrar e o ocultar, mantêm o espectador em permanente estado de atenção e descoberta, como nos melhores suspenses.
A obsessão doentia do protagonista em investigar em segredo todo um lado desconhecido da vida de sua amada faz lembrar dois filmes, o clássico Um corpo que cai, de Hitchcock, e o recente Para minha amada morta, de Aly Muritiba, ainda que as tramas e os contextos sejam completamente diversos nos três casos.
Por mais que os personagens, tanto ela como ele, se exponham na locução em off que reproduz seus fluxos de consciência, algo neles sempre permanece opaco e inescrutável.
Há um detalhe de encenação que não deve passar batido: quando vê pela janela a mulher sendo estuprada, Mario pega uma grande pedra, entra em casa com ela, mas hesita em usá-la contra os agressores e a deixa sobre uma mesa de trabalho, trocando-a por uma grande tesoura. Pois bem: durante todo o filme essa pedra permanecerá pousada no mesmo lugar, sem que ninguém a tire dali ou questione a sua presença. É como que a representação visual, concreta, de um peso ou obstáculo indizível que passa a existir entre o casal.
A ausência de um final feliz ou redentor, poderíamos dizer, é resultado dessa pedra no meio do caminho.
Curiosidades biográficas: Anita Rocha da Silveira, diretora de Mate-me por favor, é neta da grande psiquiatra Nise da Silveira; Chino Darín, o estuprador de cabeça raspada de O silêncio do céu, é filho de Ricardo Darín.