A Tijuca Profunda

Correspondência

06.10.11

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Meu querido Dapieve:

A partir de sua dica, li o livro de Roland Barthes, Diário de luto. Devo confessar que minha nau vascaína, transformada em cruzador com folhas de zinco, foi atingida da proa ao paiol. Tive uma terrível experiência com o luto, lá na cabeceira da pista. Enquanto meus amigos, entre 23 e 28 anos, comemoravam o nascimento dos filhos, eu enterrava minhas gêmeas, Maria e Alexandra. Maria, morena e gorducha, morreu logo. Já Alexandra agonizou, cheia de tubos, sufocando e botando sangue pelas narinas e cantos da boca durante dias, eu indo e vindo, impotente, para ver aquele horror, com o umbigo encostado na incubadeira. Eu me sentia fantasiado de médico, um farsante entre farsantes. De real, só a criança morrendo. Depois, o ritual macabro: você vai ao mesmo cartório onde registrou os nascimentos e as pessoas estavam sorridentes e lhe dando tapinhas nas costas, e documenta os óbitos, todos os funcionários com as caras enfiadas em papéis, só uma senhora no canto chorando silenciosamente. Essas perdas encerraram em definitivo qualquer hipótese de exercer medicina, e Deus foi chutado pro cu do Judas. Um mês depois das mortes, meu nariz passou a sangrar, o que nunca me acontecera antes, e que é frequente até hoje.

Barthes escreveu, entre vários achados preciosos, duas coisas que me comoveram muito:

1 – “Me sentir mal em toda parte”. / “Não estar bem em parte alguma”.

Creio que isso vem da autoconsciência. Até ser mutilado por essa tragédia, eu era um no meio de muitos, feliz ou triste, dependendo das circunstâncias. Após a perda das meninas, estou sempre autoconsciente, em expectativa, um alvo móvel, não no que diz respeito a mim mesmo, mas às pessoas que amo. E isso, como escreve Barthes, não passa. Por exemplo, está ocorrendo uma ceia de Natal, uma filha me pega distraído. Eu disfarço: “Estou me deliciando vendo vocês (são quatro filhas) indo e vindo entre os cinco netos”. Isso é verdade – mas também estou (quase) vendo outras duas filhas no meio delas, com seus próprios filhos. E aí bate a única palavra que Barthes usa em caixa alta no livro: MEDO.

2 – Barthes vê um filme que considera estúpido e grosseiro, mas um pormenor do cenário, um abajur plissado o acerta como um golpe. Essas armadilhas escondidas no cotidiano são frequentes e excruciantes. Trazem, mais uma vez, o MEDO. Já fiquei parado, em pânico, para atravessar as pistas da avenida Maracanã, embora não viesse carro algum. Talvez, como você especulou, eu temesse o caminhão barthesiano…

Antes que eu desmorone e interrompa a carta, vamos passar para a Tijuca Profunda.

O tijucano – e sou um deles – me horroriza e fascina. É um falso machão. Entra em casa, com umas cervejas na cabeça, e grita, dá decisão, mas se a patroa encarar, a maioria bota o galho dentro. Reina, coçando acintosamente o que a Liesa chama de genitália, na frente do buteco, carta marra na purrinha, mexe com as gostosonas (sem falsa modéstia, são muitas) que passeiam. Umas ficam indiferentes; poucas bancam as vaconautas, olham pra trás e sorriem. Agora, se uma delas parar, de mãos nas cadeiras, e chamar “Vem cá, meu gato, que a mamãe resolve esse atraso todo!”, o cara corre feito o Usain Bolt.

A Tijuca me ensinou o olhar cínico, a lírica bandalha. João Bosco diz que sou bom contador de histórias – no papo, bem entendido. Vamos imaginar uma: por obra e graça do Espírito Santo, um tijucano consegue entrar numa festa finíssima, de alta classe, dinheiro velho. Nada a ver com o aniversário do Mamaluf. Traja um smoking impecável e comporta-se como um gentleman de berço. Num dado instante, surge a bela anfitriã, num vestido com o corte discreto e mortal de Yves Saint Laurent, uma joia verde-esmeralda, esbanjando graça e elegância, e passa pertinho do nosso herói. Apesar de todas as juras de se conter, tão certo como vão superfaturar a Copa e as Olimpíadas, ele se inclina e sopra no ouvidinho dela, brisa em oiti:

– Se verde é assim, que dirá madura…

Trata-se de manter uma reputação, há um nome a zelar. Uma força muito mais poderosa do que a vontade dele varre seus escrúpulos, como aconteceu com o Jarbas Passarinho.

Minha dúvida é: a Sophisticated Lady gostará ou desprezará o galanteio, digno da rua Alzira Brandão em jogo do Brasil.

Como bom tijucano, aposto a cueca samba-canção na primeira hipótese.

 

Abraço fraterno,

 

Aldir

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