O sociólogo James C. Scott

O sociólogo James C. Scott

Atravessar a rua com o sinal fechado

Política

11.08.17

Dois vivas ao anarquismo

Há uma pergunta que pesquisadores e intelectuais escutam com frequência, especialmente se ligados a áreas como sociologia, história, economia ou filosofia política: “Já que vocês vivem a estudar a sociedade e seus padrões que se repetem faz séculos, por que ninguém entende direito o que está acontecendo, por que ninguém consegue prever os próximos movimentos do mundo?” Ao contrario do que ocorre nas ciências exatas, em que testes repetidos sempre dão no mesmo resultado, não existem fórmulas infalíveis que expliquem as relações humanas. A realidade é mais complexa (surreal, nos últimos anos) do que o texto; o território é um labirinto para quem viaja nos mapas.

Entretanto, o leitor que se interessar por Two Cheers for Anarchism: Six Easy Pieces on Autonomy, Dignity, and Meaningful Work and Play (Dois vivas ao anarquismo: seis estudos simples sobre autonomia, dignidade e trabalho e lazer significativos, Princeton University Press), publicado em 2014 pelo sociólogo norte-americano James C. Scott, encontrará iluminações como esta: “As organizações, ao contrário da visão comum, geralmente não antecipam os protestos. Na verdade, é um tanto correto afirmar que os protestos antecipam as organizações, que, por sua vez, normalmente tentam domesticar o protesto e transformá-lo em canais institucionais”. (O livro, assim como o grande clássico de Scott, Seeing Like a State, é inédito no Brasil. Todas suas citações foram traduzidas por mim).

Composto por vinte e nove textos curtos que o autor chama de “fragmentos”, apesar de cada um trazer uma ideia completa, Two Cheers for Anarchism é um libelo contra a opressão das instituições oficiais. Independentes, os fragmentos estão separados em seis grandes temas e, lidos isolados, discutem assuntos supostamente aleatórios – do carisma de Martin Luther King aos sistemas de avaliação acadêmica, de asilos para idosos à agricultura tribal.

Esses assuntos estão conectados subliminarmente; permeia o livro um elogio velado à espontaneidade, à improvisação, à liberdade, aos entendimentos informais que movem muitos povos. Scott é um grande defensor das ordens vernáculas, o lúdico, a informalidade, a adaptabilidade, a desobediência civil. Devido ao teor de seu conteúdo, o pequeno volume foi escrito em linguagem acessível ao não especialista. Munido de estudos e dados estatísticos, o autor realiza um esmerado ataque contra os governos plutocráticos, o rigor injustificado, as medidas de conhecimento engessadas, a tudo o que for genérico e previsível.

Não por acaso, a primeira informação do livro, logo na folha de rosto, é esta imagem:

 

ESPALHE A ANARQUIA Não me diga o que fazer!!

 

O sociólogo também critica o paternalismo que contamina o tratamento recebido pelas “massas”, tanto pelo Estado e as elites como pelas entidades de esquerda que deveriam representá-la. De acordo como ele, essas classes são tratadas como “cifras das suas características socioeconômicas”, cujas necessidades e visões de mundo parecem ser entendidas como “uma soma vetorial de consumo calórico, dinheiro, rotinas de trabalho, padrões de consumo e hábitos de voto”. Para Scott é inadmissível, moral e cientificamente, que essas pessoas não sejam ouvidas de modo sistemático, que digam elas mesmas o que querem e como entendem o mundo. Seus dois vivas ao anarquismo são, em suma, um catálogo de possíveis reações contra variadas formas de poder institucionalizado, muitas delas despercebidas por nós.

 

A Lei de Scott da Calistenia Anarquista

A mais curiosa dessas reações possíveis foi desenvolvida pelo próprio autor. Trata-se da “Lei de Scott da Calistenia Anarquista”, apresentada no primeiro dos vinte e nove fragmentos. No verão de 1990, Scott passou uma temporada numa fazenda em Pletz, na Alemanha, para aprender alemão e trabalhar numa fazenda. Por ser muito incompetente, em nome da sanidade dos fazendeiros – e da sua própria –, ele passava um dia por semana em Neubradenburg, uma pacata cidade nas redondezas.

Durante a noite, cinquenta ou sessenta moradores que faziam caminhadas precisavam cruzar uma rua com um semáforo ajustado para o tráfego diurno, pois ali era uma passagem de muitos carros e caminhões. Porém, após as nove horas da noite, praticamente não havia trânsito no cruzamento. Por ser uma cidade plana, era possível verificar que jamais algum veículo estava a caminho. Ainda assim, uma pequena multidão se amontoava na beira da calçada todas as noites. Os cinco minutos de espera pareciam uma eternidade.

Scott, que era observado com desconfiança por ser estrangeiro, muito hesitou antes de, pela primeira vez, atravessar a rua com o sinal fechado. Como não poderia deixar de acontecer, os alemães, notórios seguidores de regras, o olharam com reprovação. A infração, ainda que justificada, era para eles um grande constrangimento social. Scott começou a fazer disso uma espécie de exercício físico. Daí criou a “Lei de Scott da Calistenia Anarquista”, que se emparelha com o “Terrorismo Poético” de Hakim Bey e o “Grouchomarxismo” de Bob Black – ideias aparentemente malucas que, analisadas a fundo, fazem sentido.

O cerne de sua lei é apresentado como um discurso que ele imaginava proferido em perfeito alemão diretamente a um (talvez a todos – you) dos moradores que lhe olhavam feio: “Sabe, você e especialmente seus avós poderiam ter usufruído mais de um espírito infrator. Um dia você deverá quebrar uma grande lei em nome da justiça e da racionalidade. Tudo vai depender disso. Você precisa estar pronto”. Note a desconfortável piscadela para a “banalidade do mal”: entre esses rigorosos avós que nunca quebraram uma lei, subentende-se, estão pessoas que cometeram alguns dos maiores crimes da história da humanidade  porque recebiam ordens.

“Como você vai ficar pronto para o dia em que isso realmente importar?”, continuaria ele. “Você vai ter que estar ‘em forma’ para quando chegar o grande dia chegar.Você precisa da ‘calistenia anarquista’. Quase todos os dias, quebre alguma lei que não faça sentido, mesmo se for apenas atravessar a rua com o sinal fechado. Use sua própria cabeça para julgar se uma lei é justa ou razoável. Assim você ficará forte; e quando o grande dia chegar, estará pronto”.

 

Nossas calçadas rachadas

Os brasileiros são marombados praticantes da calistenia anarquista. Em qualquer cidade brasileira é possível encontrar hordas de atravessadores de rua, não apenas com o sinal fechado, fora da faixa, mas com tráfego intenso, adultos, crianças, animais, trombando-se entre carros e motocicletas em movimento. Brasília, uma cidade fatiada por avenidas retilíneas e condutas sinuosas, é a irônica exceção. Mas, em geral, nossos olhares de reprovação são dirigidos a quem não quebra as regras sistematicamente. No país do jeitinho, as leis surgem para serem ignoradas. A calistenia anarquista parece um dos nossos orgulhos nacionais.

Ainda assim, eis o retrocesso, o engessamento das instituições, a irrefreável ascensão da ordem oficial, o desmando da elite político-econômica, a balança perpetuamente curvada para o lado dos poderosos, ainda que não enganem mais ninguém – tudo que é combatido pelo pai da calistenia anarquista –, acompanhados pela letargia popular. O que fazer quando o exercício constante não deixa o corpo mais forte?

A reação automática contra qualquer forma de abuso seria a recusa, o grito, o protesto, a manifestação, a ocupação, a greve, a revolta, a destruição, a violência. (Nos limitemos aqui às reações “tradicionais” – por favor, não falemos em memes, bonecos infláveis, ou dancinhas sincronizadas). Em nosso caso, os resultados mais duradouros de nossos protestos parecem ter sido ataques com gás, prisões por porte de vinagre, fraturas expostas, olhos vazados, crânios rachados por cassetetes – para não falarmos das apropriações dos levantes populares por organizações oportunistas e suspeitas comandadas por adolescentes brigões, o que Scott tenta alertar na primeira citação deste texto.

De acordo com ele, “a infração e a desobediência silenciosa, anônima e muitas vezes cúmplice podem bem ser o modo de ação política historicamente preferível para as classes serviçais e subalternas, para quem o enfrentamento aberto é muito perigoso”. Uma vez que a desobediência anônima, silenciosa e cúmplice parece nos ser um costume pernicioso, antes um provedor de dissabores que de consciência política – ou seja: sendo o jeitinho o nosso hábito natural -, seria a inação uma reação possível? Existiria a opção de desaparecer?

Diante de tanto desespero, talvez devêssemos simplesmente parar de nos preocupar, abandonar tudo e nos mudarmos para o mato, como fez Henry David Thoreau (cuja Desobediência civil, não por acaso, é uma estrela polar a guiar a obra de James C. Scott). Mas espera um pouco! Não faz muito tempo, Vilmar Godinho foi obrigado a desocupar a caverna em que vivia desde 1990 numa floresta em Santa Catarina. O coitado não pagava impostos.

 

Esperar o sinal abrir

Podemos nos lembrar de Samuel Beckett. É preciso tentar novamente, é preciso fracassar melhor. Talvez devêssemos inverter o exercício proposto por Scott: em vez de infringir as leis que nos parecem injustas, tentar seguir à risca aquelas que nos parecem razoáveis. Fazer tudo, quem sabe? A greve de zelo, ou operação-padrão, consiste em seguir as normas com extremo rigor – uma maneira de provar que elas não funcionam na prática, ou de atrasar serviços que demandam flexibilidade. O mero conhecimento das normas, em nosso caso, seria um avanço. Eis a calistenia anarquista do brasileiro: fazer do jeito certo, agir conforme a lei; andar no sinal, esperar sua vez.

Desobediência civil, no país do jeitinho, é atravessar a rua na hora certa.

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