1. A sinceridade é um caminho de duas vias. Ser verdadeiro com o outro implica em ser verdadeiro consigo mesmo: é tanto meio quanto fim, e o propósito é a transparência na comunicação. Já a autenticidade pressupõe que ser verdadeiro consigo mesmo prescinde do outro, que serve como plateia de um espetáculo particular. O eu autêntico, soberano e que se deseja (e se enxerga) único, não admite a possibilidade de ser conhecido genuinamente fora de seus próprios limites, e assim ganha um status absoluto. É um fim em si mesmo. Todo valor externo se torna relativo, e cada tijolo empilhado na construção e expressão (ou, poderia ser dito, na performance) de um eu autêntico acaba erguendo um muro que confirma esse isolamento. A autoexpressão assume o lugar da intersubjetividade: o outro como olho – como alheio – ao invés de semelhante. Como resultado, distanciamento e narcisismo. Apatia substituindo empatia. O discurso do século passado foi a autenticidade. E agora?
2. Em Remainder (2005), excelente romance de estreia do inglês Tom McCarthy, ainda sem tradução no Brasil, a submersão da ânsia por autenticidade no solipsismo e seu subsequente esvaziamento são tratados de maneira direta. Nele, um homem sofre um acidente nunca descrito em maiores detalhes além de “umas coisas que caíram do céu”, recebe uma indenização milionária e após um curto período de indecisão passa a usar o dinheiro para recriar nos mínimos detalhes locais, cenas e momentos que viveu (ou imagina que talvez tenha vivido) no passado. Quanto mais bem-sucedidas as recriações, e mais autênticos parecem ao homem os gestos ensaiados e repetidos à exaustão, menos satisfação ele deriva do processo. Isso inspira recriações cada vez mais radicais e violentas: a prisão do umbigo (da “autenticidade”) como gênese da apatia. McCarthy é “secretário-geral” da International Necronautical Society (INS, Sociedade Necronáutica Internacional), que em seu Joint statement on inauthenticity declarou que “todos os cultos da autenticidade, celebrando-a sob qualquer pretexto, seja transcendência, unidade ou totalidade, para fins estéticos, religiosos ou políticos, devem ser abandonados”. Para a INS não há mais indivíduos, mas “divíduos”: sujeitos estilhaçados, em rede, títeres da contingência.
3. Estamos em 2013 e o autêntico não mais se sustenta, massacrado pelo discurso irônico, por remixes e mashups, vítima da própria inviabilidade autodestrutiva, transformado em métrica de valor de mercado. Há um movimento de retorno à sinceridade que se manifesta sob vários rótulos (New Sincerity, metamodernismo, pós-ironia e por aí vai) ou abre mão deles, e do qual um dos pioneiros foi o norte-americano David Foster Wallace, morto em 2008. Que a busca da sinceridade e da conexão emocional genuína, e o repúdio à ironia como discurso dominante, sinalizada no já clássico ensaio E Unibus Pluram, eram a intenção (conceito pouco autêntico, bastante sincero) temática por trás de sua obra já se tornou consenso entre leitores e crítica. De início influenciado pelos pós-modernistas e ainda sob o encanto do autêntico (que no ficcionista costuma se manifestar como “Olhem para mim! Olhem como eu consigo fazer esse monte de coisas! Olhem como sou único!”), logo trocou de rumo e passou a tentar usar as armas do “inimigo” contra ele mesmo. E não se pode dizer que fracassou: basta conferir a eficácia de Infinite jest (em tradução para o português do Brasil, por Caetano W. Galindo) em utilizar piruetas formais típicas do pós-modernismo para fazer o leitor prestar mais atenção ao texto, realizar uma leitura próxima, concentrada, e no processo internalizar de fato conceitos à primeira vista quase banais, de tão repetidos e diluídos pela cultura de massa para fins escusos (isto é: não estamos sozinhos; ser sincero faz bem a todos; tire o foco de si mesmo; precisamos uns dos outros; autoconsciência sufoca; entretenimento em demasia pode matar; existir pode ser um problema; e por aí vai). Também usou como ninguém artifícios literários, como estranhamento/desfamiliarização, em seus textos não ficcionais, criando em nome da empatia com o leitor um narrador que é mais DFW que o próprio DFW: tomado por uma curiosidade infantil, obcecado por detalhes, ao mesmo tempo preso dentro da própria cabeça e interessado visceralmente no que acontece dentro da cabeça dos outros, questionando se existem de fato limites entre uma cabeça e outra, preocupado com questões morais. Em seus últimos anos talvez ele tenha se colocado num beco sem saída, radicalizando a busca pela sinceridade na própria linguagem, cada vez mais despida de artifícios, mais desbastada para alcançar uma transparência talvez impossível. Há sinais dessa preocupação em alguns contos de Oblivion (ainda sem tradução no Brasil), como Encarnações de crianças queimadas, e do romance inconcluso The Pale King (a ser traduzido por Caetano W. Galindo), mas acima de tudo no famoso discurso aos formandos do Kenyon College, Isto é água. (Aqui em versão incompleta; a versão integral foi incluída na antologia Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, publicado em 2012 pela Companhia das Letras em tradução minha e de Daniel Galera). Mas haveria como escrever ficção sem lançar mão de ambiguidade, usando uma linguagem quase que puramente denotativa? Como isso se diferenciaria de um simples relato? Quais os limites da ficção, da linguagem, da comunicação humana? David Foster Wallace não está mais aqui para nos responder.
4. Talvez a solução possível esteja mesmo na primeira solução de DFW, que ecoa a dinâmica oscilante do metamodernismo de Vermeulen e van den Akker: escrever (e viver) francamente, sem temer a vulnerabilidade, abandonando o distanciamento cínico e usando todo o arsenal colocado à disposição dos escritores pelos pós-modernistas e pela própria cultura de massa contemporânea. Buscando o equilíbrio entre infinitos polos tendo como norte a honestidade, a ternura e a comunhão entre subjetividades. Ou, como bem colocou Luke Turner no manifesto metamodernista, praticando “um romantismo pragmático livre de âncoras ideológicas”, buscando a moralidade sem afundar no moralismo. Sem medo de soar óbvio ou tolo. Ou confuso.
5. Não tenho respostas, e me sinto estranho por ter de falar isso, e por ter pensado que falar isso seria necessário, e por me sentir estranho por ter pensado em falar que me é estranho ter de falar isso, mas mesmo assim falei (estou aqui falando, e falando que estranhei) e esse fato e as motivações por trás dele, que me interessam mas não consigo precisar, também me causaram alguma estranheza. E assim por diante. Em algum ponto dessa recursividade vertiginosa (e sim, quase paranoide) deve haver alguma pista sobre isso tudo.