Talvez não seja casual que, a certa altura de Uma família de dois, de Hugo Gélin, se faça referência a Eddie Murphy. Omar Sy está hoje para o cinema comercial francês como o comediante norte-americano estava para Hollywood nos anos 1980: é o astro negro oficial, escalado para dar aos filmes um verniz de simpatia e correção política e, no fim das contas, ajudar a mascarar ou edulcorar tensões raciais mais incômodas e verdadeiras.
Amortecimento de atritos
Aliás, assim como ocorria em Intocáveis (comédia dramática que lançou o ator ao estrelato), tudo aqui conflui para a acomodação, para o amortecimento dos atritos em todos os campos: das relações inter-raciais, da imigração, do trabalho, das desavenças amorosas e, sobretudo, da paternidade. É o tipo do filme do qual o espectador menos exigente sai “com os olhos úmidos e um sorriso no rosto”. Um cinema que apresenta os problemas para resolvê-los em seguida, de modo prazeroso e indolor para o espectador.
Desta vez, Sy, no começo da história, é Samuel, um bon vivant que trabalha como piloto de um iate de aluguel num balneário francês e transa com todas as mulheres – turistas e locais – ao alcance de seu sorriso irresistível. Um dia, uma dessas amantes passageiras, a inglesa Kristin (Clémence Poésy), aparece com uma criança de colo e diz a frase clássica: “Toma que a filha é tua”. A partir daí a vida do rapaz sofre uma revolução: ele vai para Londres, emprega-se como dublê de cinema, cria a filha sozinho (na verdade, com a ajuda de um amigo gay, que parece estar ali para preencher outra “cota”) etc. etc.
Não é o caso de revelar aqui as reviravoltas do entrecho. Basta dizer que elas entrelaçam calculadamente todos os elementos necessários para satisfazer o chamado “gosto médio”: disputa maniqueísta pela guarda da filha (à maneira de Kramer vs Kramer em versão mais leve), doença terminal mantida em segredo, drama de tribunal, reiteradas cenas de alegria em parques de diversão, flashes de bastidores (idealizados) do mundo do cinema, mensagens de esperança e bons sentimentos.
Não é por acaso que o filme, remake do mexicano Não aceitamos devoluções (Eugenio Derbez, 2013), é um sucesso estrondoso de público na França (3,5 milhões de espectadores) e no exterior. Mistura habilmente os apelos da linguagem publicitária (narrativa “ágil”, sem tempos mortos, iluminação uniforme, cenografia clean, cenários de cartão postal) e os da autoajuda (“o importante é ser feliz”, “viva intensamente cada segundo” etc.).
Diversão inócua
Sinto que o tom dos parágrafos acima ficou um tanto azedo, talvez para compensar a doçura do filme. Trata-se de um entretenimento legítimo como outro qualquer, que proporciona um par de horas agradáveis, desde que não se espere mais do que ele se propõe a dar. É inócuo, em todos os sentidos da palavra, inclusive no positivo, de não causar danos. E há méritos inegáveis. Omar Sy tem o que se costuma chamar de “star quality”, preenchendo toda a tela com sua figura luminosa, e a pequena Gloria (Gloria Colston) é encantadora. E alguns momentos são de fato divertidos, em especial o diálogo entre Samuel e o namorado norte-americano de Kristin, Lowell (Ashley Walters), com gozações mútuas dos dois idiomas e culturas.
Na profusão de elementos cômico-dramáticos que Uma família de dois joga na tela para prender o espectador, acaba ficando subaproveitada talvez sua ideia mais fecunda, a da realidade imaginária criada por Samuel para esconder da filha a verdade sobre sua mãe. Explorar a palpabilidade desse mundo paralelo, à maneira do memorável conto de Cortázar “A saúde dos doentes”, poderia ser interessante. Mas seria outro filme e não esse, do qual o público parece gostar tanto. Enfim, que importa que o crítico resmungue? Como disse o outro, “a plateia aplaude e ainda pede bis; a plateia só deseja ser feliz”.