Assistir a um filme do filipino Lav Diaz é uma experiência tanto sensorial como espiritual. Quem estiver atrás apenas de um entretenimento agradável por um par de horas deve escolher outro programa, até porque seus filmes costumam durar seis, oito, nove horas. Por sua própria duração, mas também pela composição das imagens e pelo ritmo do seu encadeamento, esses filmes impõem ao espectador a imersão numa outra temporalidade, o aguçamento de outro tipo de percepção.
A mulher que se foi, ganhador do Leão de Ouro no último festival de Veneza, é uma obra comparativamente curta na filmografia do diretor: não chega a quatro horas de duração. E cada minuto delas vale a atenção.
Rodado em preto e branco, com os longos e belos planos fixos característicos de Diaz (que também assina o roteiro, a fotografia e a montagem), o filme narra, em linhas gerais, a singular história de uma mulher, Horacia (a extraordinária Charo Santos-Concio), que cumpre pena de prisão por um assassinato que não cometeu.
Reinvenção da identidade
Acompanhamos os últimos dias de Horacia na prisão e, depois de solta, a tentativa de reconstrução de sua vida em liberdade. Mais que reconstrução, trata-se da reinvenção de uma identidade, trinta anos depois. E é nisso que reside, talvez, a principal originalidade de A mulher que se foi, mesmo dentro da obra do cineasta: a partir de sua soltura, a trajetória de Horacia é como uma página em branco, em que ela pode escrever uma nova biografia – ainda que sua motivação central seja o acerto de contas com o passado. Lembra, nisso, o personagem Locke de O passageiro, profissão: repórter, de Antonioni.
Mas aqui a protagonista se fragmenta em várias identidades, inclusive assumindo outros nomes: Renata, Leticia. É, em certas horas, dona de um pequeno restaurante popular e, em outras, moradora de rua que convive com ambulantes, favelados e travestis. Embora não explicitado, seu desígnio, tudo indica, é vingar-se de algum modo do homem que arquitetou sua desgraça.
Muito já se falou da proximidade de Lav Diaz com o universo psicológico e moral dos grandes escritores russos do século 19, com sua dilacerante humanidade. No caso de A mulher que se foi, é como se ele tivesse misturado o conto de Tolstói “Deus vê a verdade, mas custa a revelar” (praticamente começando onde este termina, e trocando o gênero dos personagens) e o romance Humilhados e ofendidos, de Dostoiévski.
Os grandes temas dostoievskianos da culpa, do remorso, do castigo e da vingança estão, mais do que nunca, presentes. Uma espécie de cristianismo imanente, sem Deus, repleto de compaixão, mas desprovido de sentimentalismo, impregna cada cena.
Tudo é mostrado de modo claro e ao mesmo tempo não ostensivo. As primeiras imagens – um plano aberto de mulheres trabalhando numa colônia penal, vigiadas por soldados fortemente armados – apresentam o contexto sócio-político e, ao mesmo tempo, colocam em cena, num diálogo aparentemente banal, duas personagens que, conforme saberemos depois, têm uma conexão trágica uma com a outra: Horacia e sua colega de prisão Petra (Shamaine Buencamino).
Transferência de culpa
Essa maneira de narrar de modo elíptico e indireto, pouco a pouco, em planos geralmente abertos e com foco profundo, em vez de dirigir o olhar do espectador, solicita uma atenção ativa por parte deste, que deve buscar na riqueza do quadro as informações relevantes para a compreensão e percepção do todo. Soma-se a isso a sutil intervenção da trilha sonora (sempre desprovida de música) – por exemplo, na cena em que duas mulheres conversam sobre algo prosaico enquanto, no rádio, ouvimos um comentário sobre as mortes então recentes (1997) de Gianni Versace, da princesa Diana e de Madre Teresa de Calcutá, com o conjunto perfazendo uma reflexão sobre a morte da piedade no mundo contemporâneo.
Dentro do rigor com que o cineasta desdobra sua narrativa, é curioso notar que as duas únicas passagens em que a protagonista está ausente da cena são breves momentos de confissão de outros personagens, um deles a um padre, o outro à polícia. Mas é ela, Horacia/Renata/Leticia, o motivo oculto de ambas as confissões. Transferência de culpa, transferência de castigo, transferência de vingança – é em torno desses eixos que gira todo o filme.
Cabe uma última palavra sobre a composição dos planos neste e em outros trabalhos de Lav Diaz. Há quase sempre, mais ou menos no centro da tela, uma linha vertical (poste, árvore, parede, muro, corpo humano) dividindo o quadro em quadriláteros irregulares, blocos de claridade e escuridão, sobretudo nas cenas noturnas externas, mas também nas de interior, graças à intervenção de janelas, corredores, quadros dentro do quadro, luz que vem de fora e ilumina apenas parte do espaço etc.
Além de acentuar a sensação de volume e profundidade, tal procedimento chama a atenção para o jogo de luz e sombra como um confronto assimétrico, em desequilíbrio, como a mostrar que, tanto no mundo social como no interior dos indivíduos, há um embate permanente e desigual entre as trevas e o esclarecimento (ou a iluminação, num sentido mais metafísico). Pode ser uma descabida “viagem” de espectador, mas é justamente a esse tipo de especulação que o cinema de Lav Diaz nos convida. Quem estiver disposto a embarcar verá que a expedição vale a pena.