Crusoé moderno

No cinema

09.10.15

Os filmes norte-americanos de ação e aventura em geral dependem da existência de um inimigo (pode ser o índio, o gângster, o nazista, o comunista, o serial killer, o terrorista árabe) ou de uma fronteira a ser desbravada (o velho oeste, o deserto, os mares, o cosmo). É evidente que Perdido em Marte pertence a esta segunda vertente e é em sua relação com ela que encontramos talvez seus pontos mais interessantes.

Mark Watney (Matt Damon), o astronauta dado como morto e abandonado sozinho em Marte depois que a tripulação de sua astronave foi colhida por uma tempestade, é da estirpe dos pioneiros que atravessaram oceanos e colonizaram continentes. Mais que isso: faz parte do mito do desbravador solitário, enésimo avatar de Robinson Crusoé sobrevivendo num ambiente inóspito.

Ciência e individualismo

Passemos ao largo dos possíveis, para não dizer prováveis, furos, incongruências e inverossimilhanças científicas dos eventos narrados. É uma questão menor. Mais vale atentar para o modo como o filme de Ridley Scott matiza e atualiza certas ideias caras à sociedade moderna, como a virtual onipotência da ciência, a teleologia do progresso e da conquista e, talvez ainda mais importante, o feroz individualismo que faz com que consideremos normal investir bilhões de dólares e arriscar a vida de uma porção de gente para salvar um único homem extraordinário, que passa a simbolizar, de certo modo, a humanidade inteira.

Let’s get our boy back”, a frase dita mais de uma vez, resume um espírito que vem desde os filmes de faroeste, quando um soldado ou caubói ficava para trás em território indígena, e passa pelos dramas de resgate de marines deixados além das linhas nazistas, vietnamitas, japonesas ou árabes. A diferença é que o “inimigo” aqui não é um exército ou um grupo terrorista, mas a própria natureza, o universo, as leis da física e da biologia.

Iluminista e antropocêntrico em sua essência, Perdido em Marte é uma celebração da ciência, de uma crença no poder ilimitado da inteligência humana para domar as forças naturais e colocá-las a seu favor. Não é por acaso que se enfatiza em vários momentos o papel do protagonista como “colonizador”. Até produzir água em Marte Watney consegue, a partir da reciclagem da sucata deixada ali por seus companheiros. É, nesse sentido, o exato oposto do 2001 de Kubrick, eivado de dúvidas e angústias sobre a condição e os limites do homo sapiens. (Ironicamente, o lançamento de Perdido em Marte coincidiu com a divulgação da descoberta de água no planeta vermelho, o que suscitou até especulações um tanto paranoicas sobre um possível conluio entre a Nasa e a promoção do filme.)

Inteligência heterodoxa

Mas a apoteose da ciência tem nuances interessantes aqui. Como já se tornou quase um clichê em filmes de temática científica, a resolução de um problema crucial acaba advindo como que por acaso, graças à inspiração de uma mente heterodoxa, “marginal”. No caso, o jovem e meio aluado astrofísico Rich Purnell (Donald Glover), com seu jeito relaxado de artista de rua ou vendedor de celulares piratas. Perdido em Marte, com isso, reforça a crença de que o sistema – científico, mas também social e cultural – precisa frequentemente do influxo de ideias e ações alternativas, de um pensamento outsider, fora do padrão.

Haveria muito mais a dizer sobre isso, mas cabe chamar a atenção também para uma questão que Ridley Scott ameaça abordar mas deixa, por assim dizer, no meio do caminho: as vertiginosas mudanças de escala temporal e espacial. Todo o terror contido na ideia de que o próximo contato humano do protagonista se dará apenas dali a anos acaba por se diluir na estrutura da narrativa, na montagem dinâmica que contrapõe a vida na Terra ao cotidiano de Watney, bem como na rapidez com que se estabelece (na percepção do espectador, ao menos) a facilidade extrema das comunicações, cujo ápice é a transmissão ao vivo, em praça pública, da tentativa de resgate do astronauta. Sim, vemos Watney ficar barbudo e perder peso, lemos as legendas dizendo quantos dias solares (Sols) se passaram, mas tudo isso chega desprovido de angústia e desconforto ao espectador. A disco music que, assim como o astronauta, somos forçados a ouvir o tempo todo ajuda nessa diluição.

Todos amigos

Todo filme, seja ele um épico histórico ou uma ficção científica, traz as marcas de seu próprio tempo, e não é casual que Perdido em Marte se resolva como um espetáculo midiático global, assim como não é casual que a grande missão seja uma joint venture entre norte-americanos e chineses. No mercado global, hoje são todos capitalistas, são todos “amigos”, ainda que os chineses entrem como coadjuvantes e predomine o tom patriótico da “façanha americana”.

De certo modo, escolher amigos e não inimigos já é uma vantagem. E quanto a isso, mesmo no front interno, Perdido em Marte tem a qualidade de escapar do maniqueísmo rasteiro de aventuras mais infantiloides. Não existe ali o chefe político oportunista ou o empresário inescrupuloso que põe em risco a missão por conta de seus interesses pessoais. Para o bem e para o mal, estão todos candidamente empenhados no resgate do astronauta Witney e na celebração da infinita capacidade humana de explorar mundos (em todos os sentidos do verbo).

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