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Meu querido Dapieve:
Antes da esculhambação que darei num (in)certo poder de nossa pátria amada, ficaram faltando dois causos envolvendo aviões: na década de 70, em plena ditadura, João Bosco e eu passávamos pela vistoria de bagagem no aeroporto de Manaus, Zona Franca em todos os sentidos. Eu havia comprado uma pequena filmadora. Durante a revista, apareceu um sujeito grandalhão, de terno, com bigodes de Zapata, e mostrou a carteira de policial:
– João Bosco e Aldir Blanc?
Amigo, não sei o que o João sentiu. Para mim, foi igual ao momento gelado na coluna quando foi aplicada a morfina, antes de minha cirurgia de fêmur. O casal que examinava as malas entrou no clima e ficou paralisado. O homem da lei nos olhava com – não há outras palavras para descrever aquilo – profundo rancor, não movia um músculo, não falava. Pensei com meu zíper: deve ser um novo método de tortura… Depois de uns bons cinco minutos (quânticos: a eternidade em pequena fração de tempo) nos fuzilando com pupilas de Glock, o galalau perguntou aos funcionários:
– Tudo certo com as coisas deles?
Os dois só acenaram positivamente, verdes de medo. Pensei: é agora. Camburão, pau de arara, afogamento em barril, choque nos miúdos… Aí, ouvimos, como se tivéssemos levado um soco do Minotauro nos tímpanos:
– Boa viagem! Vocês não gostam da polícia, mas eu sou fã de vocês.
E demos os autógrafos mais tremidos de nossas vidas.
Em Belém, houve de tudo antes do aeroporto. O divulgador nos levou a um programa de TV ao vivo. Estressado pela excursão interminável, quando João ouviu o entrevistador nos chamar de “monstros sagrados”, teve uma crise de riso. Nunca mais vi coisa parecida. Corta. Entram comerciais de emergência. João, refeito, se desculpa. No ar! A pergunta é repetida e João explode numa gargalhada incontrolável. Fomos quase chutados para fora da emissora. Jantar. O divulgador, que também era boiadeiro, reclamou da risadaria. João e ele quase saíram no pau. Botei panos quentes. Aplacado, o dublê de divulgador e vaqueiro, talvez por isso mesmo, quis nos levar a um lugar maravilhoso (sic) chamado “Dragão Chinês”. Era meio bar, casa de moças dançando peladas naqueles mastros, e prostíbulo. Mal o táxi parou, vimos uma briga na entrada do local que lembrava um pouco a ofensiva do Tet. João se atirou de volta no táxi e proferiu a frase antológica:
– Em matéria de monstro, chega por hoje.
Às 6 da matina, estávamos aguardando nosso voo, depois de passar a noite biritando no quarto, quando uma voz em tom de urgência trovejou no aeroinferno:
– Pedimos que médicos presentes se apresentem ao policial mais próximo, que os conduzirão à pista. Está chegando de Miami um avião com um passageiro passando mal a bordo!
Eu já havia largado medicina, mas o remorso falou mais alto. Fui conduzido por um incrível (o que os aeroportos escondem…) labirinto à pista. O treco pousou. Um médico uniformizado da Aeronáutica e eu entramos. O passageiro desaparecera. Fomos, óbvio, procurar no banheiro do mais-pesado. A porta quase não abria, mas dava pra ver um pé.
– It is here! – disse a esposa (eu acho).
Primeiro diagnóstico: porre total e intensas dores abdominais. O paciente americano era imenso, tomava todo o banheiro. Eu e o flydoc nos entreolhamos. Não havia mau cheiro. Pedi ao comissário de bordo – garantiu que falava inglês correntemente – para perguntar se o montanha havia conseguido defecar. A pergunta:
– The doctor is asking me if you…
Como lhe faltou a palavra, agachou-se no corredor e fez mímica…
Fica pra próxima.
Abraço fraterno,
Aldir