Há muito tempo pratico uma atitude política bastante simples: escolher a quem conferir o estatuto de inimigo. O argumento é quase óbvio. Se o reconhecimento também pode ser negativo, quando dou a alguém o lugar de inimigo estou conferindo reconhecimento a um interlocutor. Recusar provocações não é, portanto, uma prática zen, mas uma decisão calculada de saber escolher com quem debater. Seguindo essa linha, tenho ignorado as provocações das feministas radicais, a meu ver uma corrente equivocada que infelizmente tem feito muito barulho dentro do movimento de mulheres brasileiras. Hoje, para abordar algumas das principais questões do livro A vítima tem sempre razão? – Lutas identitárias e o novo espaço público no Brasil (Todavia), de Francisco Bosco, decidi travar com elas um debate triangular.
Numa ponta estão os argumentos de Bosco, para quem há uma distorção na afirmação prévia de que a vítima tem sempre razão – o que justifica a interrogação do título. Esse pressuposto seria resultado de uma confusão entre a condição de opressão histórica de grupos injustiçados e a situação particular em que determinada pessoa foi alvo de uma violência específica a ser investigada e punida. Numa segunda ponta estão os discursos aos quais Bosco se opõe, certos movimentos identitários que lutam por afirmar que a vítima tem sempre razão por entenderem ser esta a forma de reparar injustiças históricas. Na terceira ponta desse triângulo estou eu, numa posição crítica muito específica contra as feministas radicais, as chamadas radfems.
O feminismo radical emergiu nos EUA dos anos 1980, na onda de puritanismo da sociedade norte-americana presidida por Ronald Reagan, e tem duas principais teóricas, Andrea Dworkin (1946/2005) e Catharine MacKinnon (1946). Suas principais lutas se voltaram contra a pornografia e a prostituição, por elas entendidas como formas de violência contra a mulher e estímulo ao estupro. Um dos inúmeros desserviços da importação acrítica das pensadoras radfems é ignorar uma longa história de resistência de movimentos feministas brasileiros ao colonialismo dos saberes. Desde o século XIX, quando se pode nomear a primeira feminista intelectual brasileira, até hoje, passando pela influência internacional das sufragistas ou pelas políticas de tradução lideradas por Rose Marie Muraro e Heloisa Buarque de Hollanda nos anos 1970 e 1980, os feminismos nativos se desenvolveram num binômio de vulnerabilidade e resistência, estabelecendo inclusive um importante trabalho de crítica da mera importação de teorias que em nada conversam com a realidade brasileira.
Feministas pós-coloniais discutem, antes mesmo deste termo entrar na moda, que autoras importamos, o que traduzimos e por que, como as políticas editoriais fornecem maior ou menor visibilidade a certos pensamentos, justo para que não se faça da teoria feminista um tipo de saber aplicável em qualquer lugar, sem crítica ao contexto social, cultural e político em que está sendo produzida e usada. Foi assim com Lélia Gonzalez, para citar um dos exemplos mais bem sucedidos de articulação entre a crítica de Angela Davis à escravidão nos EUA e sua adaptação às circunstâncias históricas brasileiras.
Não me parece coincidência que a corrente das feministas radicais esteja fazendo tanto barulho no Brasil desde 2013, principalmente nas redes sociais, ambiente de análise do livro de Bosco. Até então, tínhamos uma tradição de associar movimentos feministas com lutas progressistas por justiça social, em que pese as valiosas críticas do predomínio do feminismo liberal branco entre nós. Hoje enfrentamos, aqui como nos EUA, uma onda neoconservadora – termo usado pela cientista política Wendy Brown para definir a atual articulação entre moral, religião e capital, que tem conseguido emparedar a esquerda, mesmo a liberal – contra a liberdade. Os fundamentos desse neoconservadorismo são a articulação entre leis e mercado, um estado securitário e autoritário e o pânico moral muitas vezes mobilizado pelas radfems.
Esse é um dos componentes que enviesa a afirmação de que a vítima tem sempre razão, cena em que uma mulher é apenas vítima diante de um homem que é sempre algoz. Contra essa falsa dicotomia, Bosco analisa inúmeros episódios em que, apesar do posicionamento das redes sociais e dos discursos feministas, no julgamento particular de cada caso a vítima nem sempre tinha, de fato, razão. Foi nesse ponto muito específico que o livro de Bosco me interessou. Pelo menos desde o início dos anos 2000 venho discutindo o problema de fazer política feminista a partir de uma vitimização das mulheres. Neste percurso, já estive acompanhada da pensadora francesa Elisabeth Badinter, autora de uma contundente crítica (Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos, Civilização Brasileira, 2005) de uma política feminista feita em função da vitimização das mulheres; e da filósofa Judith Butler, com quem trabalho a fim de argumentar que a tarefa dos movimentos identitários – aí incluídas as feministas – não precisa ser a de reivindicar vulnerabilidade, porque esta reivindicação apaga os elementos de resistência presentes no grupo. Ou, para usar uma contradição explícita, enfraquece sua força.
Bosco traz para sua argumentação a ótima feminista Laura Kipnis, autora de Unwanted advances: sexual paranoia comes to campus [Avanços indesejados: a paranoia sexual chega ao campus], no qual mostra casos de distorções de denúncias de abuso sexual que apenas afirmam a passividade e a fragilidade da mulher , eliminando assim a capacidade das mulheres de fazerem suas próprias escolhas. Kipnis descreve as relações entre professores e alunos nas universidades norte-americanas, marcadas por paranoias de ambos os lados.
No Brasil, a universidade pública talvez seja um dos melhores ambientes para perceber o que Bosco descreve como a passagem da cultura à política. Recém-ocupada por inúmeros grupos até então excluídos da oportunidade de acesso ao ensino superior, parece fácil compreender que qualquer tipo de assédio – sexual ou moral – que ameace esse lugar tão tardiamente conquistado deve ser objeto de repúdio e punição. Como fazer isso sem que a vítima tenha sempre razão parece ser o problema que o livro de Bosco busca enfrentar quando reconhece a necessidade de justiça social a grupos historicamente excluídos, sem aceitar que isso sirva de justificativa para injustiças particulares. É nessa linha de tensão que Bosco escreve, e com a qual se faz política todos os dias no Brasil de hoje.
A mim parece importante abordar um ponto caro ao argumento de Bosco, com o qual concordo: a vitimização das mulheres diante de homens algozes corre o risco de transformar toda relação heterossexual em uma forma de violência, seja porque exclui das mulheres o poder de consentimento, seja porque carimba nos homens a marca de perpetrador. Contra essa perspectiva do pensamento das radfems se insurgiram, já nos EUA dos anos 1980, o movimento de feministas pró-sexo, lideradas pela antropóloga Gayle Rubin, e outros confrontantes dos discursos que afirmam ser incontrolável a força da sexualidade masculina, enquanto a sexualidade feminina, por ser moralmente condenável, deve ser constrangida primeiro por ela mesma. Por esse caminho, recairia sobre a mulher uma dupla violência, o peso da moral sexual civilizada, para usar a expressão de Freud tão bem atualizada pela professora Claudia Murta (UFES) em seu trabalho sobre as contradições da feminilidade, onde as liberdades de escolha estão marcadas pelos limites da formação subjetiva das mulheres.
A crítica ao modelo heterossexual como único anima há muito tempo os feminismos lésbicos, movidos pela concepção de que uma vida afetiva, sexual e social sem os homens é uma forma de resistência aos modelos familiares heterossexuais que, embora naturalizados, não são os único possíveis. Não se rejeita especificamente os homens, mas a ideia de que há uma única forma de família e parentesco. A homoafetividade aparece como uma “vida outra”, menos normativa, mais disruptiva, criativa. A condenação da heterossexualidade sem oferta de alternativa termina por sobrepor a condenação da heterossexualidade à condenação de toda forma de sexualidade, e a reforçar os estereótipos essencialistas contra os quais muitas correntes feministas estão lutando há séculos. Por isso talvez seja o caso de começarmos a perguntar o que as radfems brasileiras reivindicam com o termo “radical”. Para mim, no contexto político brasileiro, não existe nada mais importante do que a perspectiva da interseccionalidade, para fazer dos feminismos um instrumento de reflexão e resistência contra todos os marcadores que pesam sobre a materialidade dos corpos subalternos – não pela via materialista clássica, mas sem abrir mão do materialismo, esse sim, radical.