A diretora Julia Murat

A diretora Julia Murat

Fronteiras de fita crepe

No cinema

21.09.17

Ao apresentar seu longa-metragem Pendular no último domingo (17) no 50º Festival de Cinema de Brasília, Julia Murat quase pediu desculpas por ter feito um filme sobre afetos e intimidade num momento do país e do mundo em que, nas suas palavras, “está tudo tão cagado”.

Foi bonito ouvir isso, mas penso quase o contrário. Um retrocesso político, social e moral como o que estamos vivendo parece exigir, para completar seu estrago, um embotamento geral da sensibilidade e da inteligência. Em outras palavras, querem nos tornar brutos e burros. E é contra isso que um filme como Pendular reage.

Equilíbrio precário

É, para dizer muito resumidamente, a história de um casal de jovens artistas. Ele (Rodrigo Bolzan) é escultor, ela (Raquel Karro) é dançarina. Mas há um terceiro personagem, tão importante quanto os dois primeiros: o lugar onde eles vivem e trabalham. É um galpão de uma estamparia abandonada, em cujo chão eles traçam uma linha divisória: de um lado será o ateliê dele; do outro, o estúdio de dança dela.

É no equilíbrio precário e cambiante desse triângulo que o filme constrói sua narrativa e sua dramaturgia. As transformações que o relacionamento do casal experimenta entrelaçam-se intimamente ao processo criativo de cada um e à sua ocupação daquele chão. Os works in progress da dança e da escultura são atravessados pelas pulsões e emoções dessa fricção erótico-amorosa entre os personagens: desejo, violência, ciúme, frustração, delicadeza, tudo transfigurado em gesto e matéria, numa dialética permanente entre o fluido e o sólido, entre o movimento e a estabilidade.

A divisão do espaço, traçada visualmente com fita adesiva logo nas primeiras imagens, é renegociada o tempo todo ao longo da narrativa, ao sabor das emoções dos personagens, de sua busca artística e de sua interação afetiva. Há, além disso, a participação de outros personagens: amigos, companheiros de trabalho, operários etc.

Fronteiras porosas

Todas as fronteiras se mostram em alguma medida frouxas, porosas: o espaço da labuta é também o do sexo, o do lazer, o da vida social. Sobre o mesmo chão ocorrem jogos de futebol, trabalhos, trepadas, conversas, festas. Dizer que se trata de um filme claustrofóbico é fechar os olhos para essa contínua metamorfose do ambiente.

O crítico Luiz Zanin disse que Pendular é uma longa DR. Pode ser, mas, ao contrário do que ocorre num filme como Como nossos pais, em que tudo é explicitado nos diálogos, aqui a relação “se discute” nos gestos, nas obras, na ocupação do espaço. De modo curioso e significativo, a única conversa mais longa sobre o relacionamento do casal se dá fora de sua casa/ateliê, num café ao ar livre.

Nesse filme em que há um atravessamento permanente, e por vezes tenso, entre os meios de expressão dos protagonistas, um momento em especial enfeixa vários sentidos. É a cena em que ela dança sobre uma obra dele – uma semi-esfera, uma espécie de cuia rasa gigante de madeira, que balança ao menor toque. Os dois meios – a escultura e a dança – se fundem, mas em condições muito particulares de instabilidade e imprevisibilidade. E o detalhe é que a obra tem um cartaz de aviso: só suporta uma pessoa de cada vez. Enfim, pano para muitas conversas estético-psicanalíticas, mas o que importa aqui é que é uma cena belíssima.

A fala do sexo

Por suas elipses, por sua maneira oblíqua de expor a progressão dessa história de amor e conflito, o filme de Julia Murat é uma pequena joia, que confirma o talento e a inteligência cinematográfica da diretora, já demonstrados em seu primeiro longa, Histórias que só existem quando lembradas. Não por acaso, Pendular ganhou o prêmio da crítica nos festivais de Berlim e do Uruguai.

Faltou dizer que o filme contém algumas das mais belas cenas de sexo do cinema recente. Em si mesmas elas contam toda uma história de afeto, tensão, disputa, afirmação, força, fragilidade, rearranjos possíveis. Por conta delas – e dos tempos obscuros que vivemos – o filme recebeu classificação indicativa (leia-se censura) para maiores de dezoito anos, o que deve limitar bastante suas possibilidades de bilheteria. Uma pena, entre tantas outras.

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