Memórias flutuantes

Correspondência

17.10.11

 

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Grande Guru,

 
Frequento pouco a Tijuca, ainda menos agora que, por recomendações médicas, nossas tertúlias regadas a Jack Daniel’s estão suspensas sine die. Aliás, as últimas vezes em que voltei à Saens Peña foi para fazer exames médicos, troço de esteira e ecocardiograma e o escambau. Aproveito as viagens de metrô para dar uma chegada noutra galeria na praça e fuçar uma boa loja especializada em heavy metal, gênero do qual, não sei se você sabe, a Tijuca é o grande bastião no Rio. O nome dela é maneiro: Darklands.

Não tenho lembranças de ir ao bairro – salvo ao seu vestíbulo, o Maracanã – na infância. Na verdade, acho que mal saía da autossuficiente Copacabana, a não ser para ir ao comecinho de Ipanema, visitar o meu pediatra. O bom doutor Cláudio Mancini foi o meu médico quase até eu mesmo ser pai. Sério. O que você faz quando já não é criança para ir ao pediatra e ainda não é velho o bastante para ter um clínico? De modo a diminuir o mico das visitas, encenávamos uma ficção sobre eu ser vendedor de remédio. O único vendedor de remédio do mundo que não carregava aquela malinha quadrada.

Você começou a se lembrar de suas traumato-hilariantes idas a Copacabana, e eu pensei, cá com minhas teclas, “caramba, tenho porrilhões de histórias divertidas do bairro para contar ao Aldir”. Animado, fiz uma primeira busca infrutífera no meu cada vez menos rígido disco mental. Era como se eu digitasse “copacabana” entre aspas na caixinha, e não viesse resultado algum. Nada cômico, nada trágico, nada tragicômico, nada. Greve geral no Google. Era como se eu não tivesse passado mais da metade da vida lá, entre a Bolívar e a Miguel Lemos. Era como se, por engano ou ato falho, eu tivesse apagado da memória a minha juventude. Sensação estranha pra cacete. Respirei fundo e passei, então, para a opção “busca avançada”. E, inspirado nas suas memórias molhadas, Aldir, digitei mentalmente “copacabana praia”. Aí, sim. Alguma coisa se agitou na rede.

Incrível que até hoje ainda não tenha se manifestado um câncer de pele. Metade daquela metade da minha vida eu passei literalmente à beira-mar. Dando um confere nas meninas do colégio. Discutindo com os amigos quem era mais guitarrista, o Eric Clapton ou o Jeff Beck. Lagarteando. Pegando onda, de jacaré. Jogando bola. Metade da metade daquela metade da minha vida eu passei foi pegando onda ou jogando bola. Tanto tempo que hoje continuo sonhando que estou além da arrebentação, esperando a onda certa, de preferência uma esquerda, para deslizar no vazio antes de ser engolido pelas espumas flutuantes. Por duas vezes isso deu muito errado, e eu meti os cornos na areia, ficando com uma discreta cicatriz escavada a conchinhas trituradas perto do nariz. Mas jamais tenho pesadelos com o mar, ainda se as ondas vierem do tamanho daquela de Impacto profundo. Meu sonho às vezes não é imagem e sim sensação: eu ondulo, ondulo, feliz, feliz. Nadar de braçada no líquido amneótico talvez seja assim.

Jogar bola na praia me ensinou muito do que sei sobre lealdade, anos antes de eu saber que o Camus tinha escrito mais ou menos a mesma coisa sobre o tempo em que jogou de goleiro em Argel. Só que eu jogava de zagueiro. Fazia dupla feroz com um sujeito cujo apelido era Corvo no time “do Othon” (minha turma não era nem a da Miguel nem a da Xavier da Silveira, mas a que ficava entre as duas ruas, na faixa de areia em frente ao hotel, em instrutiva convivência com as piranhas e os gringos). Mais de um atacante parrudo se surpreendeu derrubado depois de levar uma bordoada firme de um sujeito com meu físico de existencialista. Certa tarde, num amistoso, talvez como represália, levei uma pernada que meus companheiros de time julgaram desleal. Sinceramente, não vi nada demais nela. Um dos meus chapas disse baixo: “Deixa com a gente”. Iniciou-se, então, um comovente rodízio de faltas, cada vez mais violentas, em cima do jogador adversário, até que o tal, revoltado, abandonou o jogo. Foi lindo, apoteótico.

Desde que me mudei de Copa, porém, cada vez que volto ao bairro sinto o incômodo de reencarnar o personagem do Nicholas Cage em Vivendo no limite, lembra? Ele faz o paramédico que, entre o atendimento a um drogado e o socorro a um atropelado, tem visões com as pessoas que não conseguiu salvar pelas esquinas de Nova York. Para mim, o título original desse filme do Scorsese é mais evocativo, Bringing out the dead. Desenterrando os mortos. A cada esquina do Posto 5, eu empunho a pá e enxergo um fantasma. Conhecidos que pularam do alto dos prédios, que se arrebentaram no trânsito, que foram atropelados, em quem estourou um aneurisma, que morreram enquanto faziam pesca submarina, que estouraram de tanto tomar bomba para os músculos.

Eu não tinha como salvá-los. O que me dói mesmo é não ter conseguido salvar o zagueiro magrinho de cabelos alourados.

Abração,

Arthur
 

* Na imagem da home que ilustra este post: foto de Wesley Duke Lee (São Paulo, 1963)

 

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