Diante de um filme como Sully, de Clint Eastwood, o espectador ingênuo tem a impressão de que tudo estava dado de antemão – o acontecimento real, os personagens, o drama – e de que bastavam os recursos materiais e tecnológicos disponíveis em Hollywood para colocar essa história na tela. “Com um material desses, qualquer um poderia ter feito esse filme”, diria ele. Ledo engano.
Os acontecimentos de 15 de janeiro de 2009, quando o Airbus pilotado por Chesley “Sully” Sullenberger fez um inédito pouso forçado nas águas gélidas do rio Hudson pouco depois de ter decolado do aeroporto de La Guardia, em Nova York, poderiam gerar um filme-catástrofe vulgar, um melodrama caça-níqueis, uma fábula edificante ou de autoajuda, um libelo contra a ganância das empresas aéreas e companhias de seguro.
Indivíduo e circunstância
Clint Eastwood não fez nada disso. Na melhor tradição do cinema clássico americano – a de John Ford e Howard Hawks – ele encenou o drama do indivíduo que, mesmo em condições adversas, busca cumprir seu dever com integridade e competência. A frase dita a certa altura por Sully (Tom Hanks), “I did my job” [“Eu fiz o meu trabalho”], resume a ética básica dessa estirpe de personagens.
Não há spoiler aqui. Desde o início sabemos que, com o inesperado e espetacular pouso no rio, as 155 pessoas a bordo, entre passageiros e tripulantes, sobreviveram praticamente sem ferimentos e Sully, em consequência, foi aclamado como herói nacional. Mas isso não o poupou de enfrentar uma dura sindicância que reconstituiu em minúcias os minutos anteriores ao pouso e investigou as outras possibilidades de solução (voltar ao La Guardia, pousar em Nova Jersey).
Nesse processo, Sully defronta-se consigo mesmo, com sua consciência, com sua memória. Emergem dúvidas e ambiguidades que nem sempre faziam parte do herói típico do cinema clássico, mas que têm sido frequentes na filmografia recente de Eastwood, empenhada em discutir a natureza e os limites do conceito de “herói”.
Aqui, trata-se de explorar a estreita margem de ação que resta ao indivíduo diante das constrições da tecnologia e das instituições (companhia aérea, seguradora, agência de aviação, governo, mídia). O enfrentamento crucial, contudo, é interior: fiz a coisa certa? Poderia ter feito melhor?
Sully não subverte propriamente as convenções narrativas e dramáticas de um filme de grande produção, mas de certa forma as usa a seu favor, partindo do clichê para construir um olhar original. Há, por exemplo, a inevitável relação sentimental do protagonista com a mulher, em telefonemas sucessivos e cada vez mais dramáticos, mas evita-se a apelação de pôr em cena suas filhas e diálogos chorosos do tipo “I love you daddy”, “I love you too, sweetheart” [“Eu amo você, papai”, “Eu também te amo, querida”].
Drama sóbrio
Há as breves e inevitáveis cenas descritivas de alguns dos passageiros e tripulantes antes da decolagem (uma mulher com a mãe idosa cadeirante, um homem que quase perde o voo e senta longe do filho, uma jovem com um bebê de colo, duas aeromoças que trocam amenidades), mas não se explora isso com o tradicional maniqueísmo e sentimentalismo dos filmes-catástrofe.
Essas coisas ajudam a dar densidade humana ao espetáculo, a tornar vívidos e concretos os seres envolvidos, para além da frieza dos números. As cenas mais pungentes, ao menos para mim, são as de personagens anônimos, filmadas com sobriedade, sem ênfases visuais ou sonoras.
Por exemplo: o jovem controlador de voo tenta manter o sangue frio e orientar o avião para um pouso seguro, até que perde o contato com a cabine e ouve de um piloto de helicóptero o relato do que parecia ser uma catastrófica queda na água. Mostra-se a tela do monitor, o ambiente da sala de controle, o chefe da equipe e, quando a câmera volta para o rapaz, uma discreta lágrima está rolando por seu rosto. Assim como Sully, ele estava “doing his job” da melhor maneira possível. É quase como se a câmera, assim como o personagem, quisesse esconder aquela lágrima, em vez de expô-la com estridência como acontece no cinema vulgar.
No mais, Sully é uma orquestração engenhosa e precisa do acidente visto de diferentes ângulos, não apenas em termos visuais, mas também humanos. Em momentos diferentes da narrativa, vemos a amerrissagem do ponto de vista dos pilotos, dos passageiros, da tripulação de uma barca de transporte fluvial, de transeuntes de uma rua da cidade, do piloto de um helicóptero etc.
Embora sejam imagens obviamente espetaculares (a exemplo da sequência do tsunami no início de Além da vida, de Eastwood), o espetáculo não se sobrepõe à percepção humana. Dito de outra maneira: seu impacto é filtrado – e, de certo modo, intensificado – pela subjetividade dos indivíduos que o vivem ou presenciam. Com diz Sully em algum momento da sindicância a que é submetido, o que conta é “o fator humano”. Sem ele, o cinema é mera pirotecnia.