Há cem anos, completados neste sábado (14 de julho), nascia em Uppsala, na Suécia, um dos grandes artistas do século XX, o cineasta, diretor de teatro e escritor Ingmar Bergman. Sua obra é imensa, e é impossível dimensionar a influência que exerceu e continua exercendo sobre outros criadores e sobre a sensibilidade do público.
Para celebrar a data, o melhor a fazer é ver seus filmes. Em São Paulo (no Cinesesc) e em Porto Alegre (na Cinemateca Capitólio) – e possivelmente em outras cidades brasileiras – estão acontecendo pequenas mostras com algumas de suas obras mais aclamadas: O sétimo selo, Morangos silvestres, Persona, Gritos e sussurros, Sonata de outono. À parte isso, estão disponíveis em DVD, pela Versátil, dezenas de títulos do diretor.
Em São Paulo, além das obras-primas citadas, está programada para hoje (13 de julho), uma preciosidade um pouco menos reprisada, Monika e o desejo (1952), que de certa forma pode ser vista como uma síntese de várias linhas de força do cinema de Bergman. Antes de falar sobre o filme, talvez seja o caso de delinear sucintamente que linhas são essas.
Seria impossível, no espaço de poucos parágrafos, traçar a linha evolutiva de uma filmografia tão rica, um mar de filmes composto por mais de sessenta títulos, entre longas-metragens, telefilmes e minisséries. Conhecido por seus graves dramas metafísicos, Bergman filmou também crônica social (Porto), comédia romântica (Sorrisos de uma noite de amor), farsa moral-religiosa (O olho do diabo), ópera (A flauta mágica), drama histórico-político (O ovo da serpente) e até filme noir de espionagem (Isto não aconteceria aqui).
Grosso modo, porém, podem-se identificar algumas fases ou momentos mais marcantes. Formado pelo grande teatro nórdico de Ibsen e Strindberg, mas também por Tchekhov e O’Neill, Bergman realizou inicialmente dramas psicológicos com forte observação do contexto social e foi dirigindo seu foco cada vez mais para questões existenciais e, no limite, metafísicas: o sentido da vida, o caráter transitório dos laços humanos, a relação do homem com a morte, com Deus, com a finitude.
Universo pessoal
A par desse adensamento temático, o cineasta foi também depurando seus meios e sua linguagem, livrando-se da “sujeira” e do “ruído” do registro naturalista e forjando um mundo próprio, com absoluto controle do que se vê no retângulo da tela e do que se ouve em cena.
Nesse universo bergmaniano, destacam-se duas qualidades incontestáveis: o perfeito domínio da luz (herdado em grande parte de pioneiros escandinavos como Carl Dreyer e Victor Sjöström) e a extraordinária direção de atores. Para sentir-se seguro como demiurgo e senhor desse mundo, Bergman contava com parceiros fiéis: os fabulosos diretores de fotografia Gunnar Fischer e, depois, Sven Nykvist, e um punhado de atores formidáveis, como Gunnar Björnstrand, Harriet Andersson, Max von Sydow, Liv Ullman, Bibi Andersson e Erland Josephson.
Com essas faculdades – o comando da luz, o domínio da expressão dramática – Bergman captou a riqueza do rosto humano como poucos artistas de seu tempo. Em especial do rosto feminino, pois uma das constantes de boa parte de sua filmografia é o protagonismo feminino, ou melhor, a investigação do abismo que é a alma da mulher, seus desejos, suas pulsões, seus mistérios.
Monika, filme-síntese
E agora podemos falar de Monika e o desejo, que pode ser considerado um marco por mais de um motivo. Primeiro, porque revelou ao mundo a fantástica Harriet Andersson, descoberta por Bergman quando rebolava no palco de um teatro de revista. (Em Gritos e sussurros, feito vinte anos depois, ela é Agnes, a mulher moribunda que as irmãs vão visitar.) Aqui, Harriet é uma moça pobre, a Monika do título, que trabalha numa quitanda, mora com o pai alcoólatra e a mãe submissa e namora sem compromisso os rapazes do bairro, na periferia de Estocolmo. Sua vida tem uma primeira virada quando ela começa a namorar sério com um jovem trabalhador, Harry Lund (Lars Ekborg).
Os dois namorados rompem momentaneamente com o mundo opressivo em que vivem e partem de barco para um verão sem família, sem patrão e sem destino. O título original sueco é, justamente, Verão com Monika (Sommaren med Monika). Do que acontece depois é melhor não falar.
Cabe dizer apenas que tudo começa como uma crônica social neorrealista: personagens comuns, bairro pobre, ambientes de trabalho, bares populares, a dureza do dia a dia. Aos poucos, imperceptivelmente, Bergman opera mudanças de enfoque e de estilo, nos conduzindo para os desvãos das relações afetivas entre os jovens protagonistas e suas diferentes perspectivas de vida, tudo isso de certo modo refratado pela cambiante natureza ao redor: rio, bosques, rochedos, portos, relva, mar. Mesmo nos momentos mais bucólicos e graciosos da harmonia do casal pode aparecer o contraponto agourento de nuvens que se adensam no céu, ou da grasnada estridente de gaivotas.
Embora esteja em cena boa parte do tempo e a vejamos efetuando todo tipo de ação – fazendo sexo, separando frutas, nadando, passando um café, roubando um pedaço de carne, dançando, agredindo um homem com uma panela –, Monika mantém um núcleo oculto e misterioso. É um enigma fascinante e perturbador, uma das mais interessantes personagens femininas do cinema.
Transição de estilo
Também em Monika e o desejo observa-se uma transição de estilo dentro do cinema de Bergman. Alternam-se no filme sequências forjadas na chamada decupagem clássica (a cena decomposta em vários planos e contraplanos, dirigindo o olhar do espectador) e planos-sequências em que se explora a profundidade de campo e a movimentação cênica dos atores sem o recurso aos cortes e ao contracampo.
Um caso admirável de plano-sequência é o da cena em que Harry é demitido de seu emprego numa fábrica ou distribuidora de louças. Vemos em primeiro plano uma fileira de copos numa prateleira. Logo atrás, o próprio Harry, arrumando-os. Mais atrás, seu patrão e seu chefe imediato, falando sobre ele. Acompanhamos todo o diálogo observando as mudanças produzidas pelas falas no rosto do rapaz. Nesse tipo de concentração dramática, que seria arruinada por qualquer corte ou deslocamento de ponto de vista, Bergman era insuperável.
E chegamos por fim à sequência mais célebre de Monika e o desejo, citada como um divisor de águas por vários realizadores modernos, entre eles, imodestamente, pelo próprio Bergman. Durante uma ausência do marido, Monika vai a um bar e se encontra com um amante. Essa é a descrição “externa” da cena, que na verdade se passa assim: vemos alguém, de costas, colocar uma música numa jukebox e voltar para sua mesa, e no movimento de câmera que acompanha esse retorno avistamos Monika sentada à mesa diante de uma bebida qualquer. A câmera se detém por um momento nela, que apanha um cigarro e, inclinando-se um pouco para a frente, acende-o no cigarro do homem diante de si. Há em tudo, na expressão dos rostos, na brasa que se aviva, na fumaça que domina o espaço, um erotismo quase palpável. A câmera se detém em Monika/Harriet, que desvia então o olhar diretamente para a câmera, com uma expressão desafiadora.
“Pela primeira vez na história do cinema um ator estabeleceu um contato direto e impudico com o público”, escreveu o diretor. Talvez haja exagero e imprecisão nessa declaração, mas o fato é que essa “quebra da quarta parede”, chamando a atenção para o caráter artificial da encenação, entusiasmou, entre outros, os jovens críticos franceses que engendrariam a Nouvelle Vague, e abriu caminho para os exercícios metalinguísticos que caracterizariam boa parte do cinema de invenção posterior.
Monika e o desejo, à sua maneira, faz a ponte entre o neorrealismo e a Nouvelle Vague, entre o Bergman social e o metafísico, entre o teatro clássico e o cinema de vanguarda. Tudo isso sem deixar de ser uma linda e dolorosa história de amor, com uma notável coesão interna – veja-se, por exemplo, o paralelo entre a cena inicial, em que Monika se vê num espelho de rua, e o desfecho, em que Harry se observa no mesmo espelho, com um detalhe que não vou contar aqui, mas que contradiz, ainda que momentaneamente, o tão falado pessimismo bergmaniano.