Um thunderjaw, de Horizon

Um thunderjaw, de Horizon

Onde vivem os Dinobots

Games

13.09.17

Dinossauros mecatrônicos aparecem com destaque no universo fantasioso de duas recentes obras de grande apelo comercial, o game Horizon: Zero Dawn (da desenvolvedora holandesa Guerrilla Games, para Playstation 4) e o longa-metragem Transformers: A era da extinção (dirigido por Michael Bay). Seria fácil passar por cima desses grandes répteis robóticos como ocorrências banais na paisagem do entretenimento escapista, meros apelos infanto-juvenis a brinquedos dos anos 1980, a clássicos da ficção científica e às várias adaptações audiovisuais de O mundo perdido, de Arthur Conan Doyle. Se levarmos em conta o imaginário contemporâneo, porém, onde pesam questões como mudança climática, extinções em massa, avanço da inteligência artificial, engenharia genética, pós-humanismos e pós-apocalipses, a coincidência pode começar a parecer menos banal. Para além dos atrativos estéticos, dos óbvios aos mais sutis, talvez esses robôs em forma de tiranossauro indiquem um conjunto de ansiedades contemporâneas.

Em Horizon: Zero Dawn, o jogador assume o controle da heroína Aloy (de alloy, “liga metálica” em inglês), uma garota banida de sua tribo selvagem. Ainda bebê, ela foi encontrada dentro de uma caverna sagrada, sem nenhuma pista sobre os seus pais. Criada por um pai adotivo, Aloy busca se reintegrar ao seu povo e desvendar o enigma de sua concepção. Nas primeiras cenas, a história parece se passar em um mundo pré-histórico semelhante a tantos outros na literatura e no cinema. A tribo de Aloy é uma comunidade matriarcal de caçadores-coletores que vivem nas montanhas e veneram a natureza. Até que Aloy escorrega para dentro de uma caverna esquisita, que parece abrigar as ruínas de um bunker de alta tecnologia. Lá encontra um pequeno dispositivo de orelha que lhe fornece poderes de realidade ampliada. Nesse ponto, o jogador descobre que o universo ficcional do jogo não é pré-histórico, mas pós-apocalíptico. O território é povoado não apenas por outras tribos, mas também por robôs que mimetizam dinossauros e outras espécies de megafauna extinta do planeta Terra. Para fabricar armas e trajes, os humanos exploram peças de máquinas e artefatos deixados pelos “Antigos”.

Assim, numa virada desnorteante, Aloy e o jogador se veem diante de dois enigmas interligados. O primeiro diz respeito à origem de Aloy. Quem a abandonou ainda bebê no coração da montanha? Ela possui pai ou mãe? Por que sua voz é capaz de destrancar portas e autenticar tecnologias deixadas pelos Antigos? O segundo enigma diz respeito ao mundo em si. Ao que tudo indica, os ecossistemas da Terra recuperaram a exuberância anterior à intervenção humana. Ruínas de edifícios e toda uma arqueologia de gadgets e bens de consumo sugerem o fim de uma civilização que teria culminado na segunda metade do século XXI. Em que futuro estamos? Como os seres humanos voltaram a ser caçadores-coletores? De onde vem o  zoomorfismo das máquinas? Em um primeiro momento, parece que máquinas inteligentes evoluíram ao longo de milhões de anos até condições ambientais semelhantes acabarem por conferir-lhes o aspecto da fauna conhecida de nosso planeta. Mas os artefatos tecnológicos que Aloy encontra pelo caminho indicam uma linha de tempo de no máximo alguns séculos. O roteiro do jogo acaba respondendo a todas essas perguntas, mas também as complica cada vez mais, numa teia de tramas e subtramas contadas pelos personagens e por centenas de relíquias, mensagens de áudio, memorandos e hologramas espalhados pelos cenários.

Aqui, o que nos interessa pode ser assim resumido: Horizon: Zero Dawn se passa no início do quarto milênio, depois que máquinas de guerra criadas pelo homem, dotadas de inteligência artificial e capazes de converter qualquer tipo de biomassa em energia, se replicaram de forma descontrolada e se alimentaram de todo o ecossistema terrestre, inviabilizando a existência de quase todas as formas de vida. É interessante notar que as máquinas foram criadas por um empreendedor bilionário chamado Ted Faro, uma espécie de Elon Musk, tão visionário e bem intencionado quanto ingênuo em relação às exigências materiais e às demais consequências de seus projetos tecnológicos (o enxame de máquinas devoradoras ficou conhecido como a “Praga de Faro”). Quando a resistência humana por meio do combate se revela inútil, o futuro da humanidade cai nas mãos de outra cientista, Elizabeth Sobeck, uma especialista em “tecnologias verdes” de combate à poluição e à mudança climática. A solução de Sobeck é radical: alguns humanos eleitos se protegem em bunkers e desenvolvem uma inteligência artificial chamada GAIA, cujo objetivo é reconstruir o ecossistema terrestre depois do apocalipse. Os bunkers também abrigam embriões humanos e um arquivo com todo o conhecimento acumulado pela humanidade ao longo dos milênios, visando uma recolonização.

Alguns dos dinossauros-robô de Horizon: Zero Dawn

Eis a revelação mais significativa de Horizon: Zero Dawn: os dinossauros mecânicos que Aloy precisa enfrentar não são máquinas que evoluíram ao longo de milhões de anos nem criações humanas: foram criados por GAIA, a inteligência artificial, que passou um punhado de séculos brincando na superfície terrestre com seus recursos intelectuais e materiais aparentemente infinitos, até gerar o mundo que vemos ao nosso redor no game. Em um diálogo entre Sobeck e GAIA, ficamos sabendo que a inteligência artificial havia adquirido uma predileção estética pela megafauna pré-histórica: em suma, ela cria os robôs-dinossauros porque os acha belos, fascinantes. De fato, as máquinas que povoam a Terra nesse futuro especulativo são lindas. Com formas imitando tiranossauros, crocodilos, gazelas e águias gigantes, são ao mesmo tempo inteligentes (nunca encontrei inteligência artificial melhor do que essa nos games; fiquei aterrorizado na primeira vez que vi um crocodilo mecânico desviar da dúzia de armadilhas que instalei para danificá-lo, para em seguida me cercar e me trucidar como faria um predador de carne e osso) e limitadas a seus padrões computacionais, rondando o território em circuitos padronizados e exibindo sinais de “burrice” mecanizada.

Mas nem tudo deu certo no plano de Elizabeth Sobeck: várias falhas imprevistas atrapalharam o plano original, entre elas a corrupção do arquivo de todo o conhecimento humano. Por isso os humanos que aparecem no jogo vivem como tribos pré-históricas: foram desovados séculos após a catástrofe num planeta semi-artificial, sem a cápsula do tempo que lhes daria acesso instantâneo ao conhecimento moderno. Aqui, a jornada heróica de Aloy não vem muito ao caso: como seria fácil de prever, ela é uma espécie de messias pré-programada nesse idílio pós-apocalíptico, nascida com a missão de destruir uma outra inteligência artificial maligna que ameaça impedir GAIA e destruir o planeta novamente. O mais interessante é notar como o mito pós-apocalíptico tradicional é atualizado de maneira a colocar a máquina inteligente como protagonista de nossa derrocada ou salvação. A Gaia de James Lovelock, a biosfera que se autorregula, já não tem o poder de realizar sozinha a tarefa de purgar ou recuperar o mundo destruído pela ação humana: GAIA, uma inteligência artificial criada pelo próprio homem, é a única entidade capaz de dar conta do recado. (Vemos um tema semelhante nos dois filmes mais recentes da série Alien, dirigidos por Ridley Scott. Em Alien: Covenant, especialmente, vemos como o androide David se apaixona pelos poderes de criação, conferidos a ele por nós, e os emprega na tentativa de aniquilar os humanos e criar uma “forma perfeita de vida” que os suceda.)

Em seu livro O mundo sem nós, Alan Weisman tece uma narrativa fascinante sobre o que aconteceria na Terra se os humanos sumissem de cena. O plástico e a radiação sobreviveriam por milênios, enquanto a maioria das criações e construções humanas seriam devoradas pela natureza em questão de décadas ou séculos. Em Horizon: Zero Dawn, essa noção de que somos insignificantes para a natureza, de que o planeta estaria melhor sem nós, se transforma em outra coisa: na ideia de que nosso legado de destruição pode ser tão potente que somente o gênio humano poderia revertê-lo através da computação e da engenharia. Numa virada ideológica radical das narrativas apocalípticas de matiz ecológica, o homem volta a ser o centro da atenção, o artífice de mundos, o rei da natureza – nem que seja indiretamente, por meio das tecnologias que inventa. O planeta não vai se virar sozinho diante das catástrofes iminentes, diz a ideologia em questão, sejam elas climáticas ou de qualquer outra natureza: ele precisará da geo-engenharia, ou seja, de nós. O robô em forma de dinossauro é uma encarnação dessas novas fantasias no contexto de um produto cultural de massa: a natureza primitiva deixa de ser um estado mais puro ao qual faríamos bem em retornar, para se converter em reboot cibernético engendrado pelo homem e/ou suas máquinas.

Se em Horizon: Zero Dawn o dinossauro mecânico representa a fusão da pureza primitiva com o milagre tecnológico programado pelo homem, em Transformers: A era da extinção os robôs dinossauros acenam para uma categoria de ansiedades um pouco diferentes, ainda que relacionadas: a origem da vida e o mistério da consciência. Sei que pode soar ridículo falar dessas coisas a partir de um blockbuster dirigido por Michael Bay, mas a verdade é que os filmes da série Transformers, apesar dos roteiros confusos, do conteúdo adolescente e da glorificação bélica e imperialista dos Estados Unidos, são verdadeiras esponjas do Zeitgeist, capazes de absorver temas científicos e geopolíticos – terrorismo, imigração, aquecimento global, engenharia genética, inteligência artificial – para vomitá-los com cinismo na forma de filmes patetas e incoerentes com três horas de duração, montado em planos que dificilmente ultrapassam os décimos de segundo.

A era da extinção, o quarto longa da série, abre com uma sequência em que imensas naves alienígenas sobrevoam a Terra de sessenta milhões de anos atrás, despejando bombas que devastam a biosfera, incluindo os dinossauros, e a recobrem de um metal chamado Transformium. De volta ao tempo presente, somo jogados no meio de uma trama hiperativa que mais uma vez estabelece uma guerra entre quatro forças: os Autobots (os Transformers do bem), os Decepticons (os Transformers do mal), os humanos do bem que defendem o convívio pacífico com os Autobots e os humanos do mal que se aliam aos Decepticons em busca de domínio militar, riqueza et cetera.

Tanto em Horizon: Zero Dawn quanto em A era da extinção, grande importância é dada ao processo de terraforming, ou terraformação, termo que significa a alteração da superfície e atmosfera de um planeta para reproduzir as condições de vida da Terra (ou, em tempos fecundos para mitos apocalípticos, reproduzir as condições de vida da Terra na própria Terra). No game, o processo de terraformação é concebido por uma cientista humana para reconstruir o ecossistema séculos depois de uma catástrofe gerada por máquinas criadas por humanos. No longa dos Transformers, a terraformação da Terra tem origem alienígena: seres conhecidos como Criadores, que deram origem tanto aos Autobots quanto aos Decepticons, vieram adaptar nosso planeta no tempo dos dinossauros. Esses seres não são exatamente animais nem máquinas. Têm mais parentesco com a forma de vida alienígena que dizima a equipe de cientistas do filme Um enigma do outro mundo, clássico dirigido por John Carpenter: uma espécie de vírus ou espectro que atua diretamente no DNA ou outras moléculas e partículas da matéria, matando, fundindo e replicando diferentes criaturas ou, no caso dos Transformers, máquinas.

Tudo isso parece apenas uma  justificativa para que tenhamos automóveis de computação gráfica se transformando em robôs humanoides gigantes e contracenando com atores humanos dentro de um filme que preserve alguma relação com o mundo real. Mas a questão dos invasores alienígenas fica mais interessante quando finalmente nos deparamos, no ato final do longa-metragem, com os Dinobots. Ao que parece, são resultado do contato do Transformium com os dinossauros pré-históricos. Isso indica que o metal alienígena é capaz de se fundir também à matéria orgânica, gerando versões mecanizadas de organismos pre-existentes. Já não se trata de apocalipse, mas de uma outra classe de mitos, sobre a origem alienígena da vida. Se os mitos pós-apocalípticos elaboram nosso horror diante da possibilidade de sermos dizimados, apontando ao mesmo tempo para um futuro (quase sempre próximo) em que a existência humana persiste e se reconfigura, os mitos de origem alienígena da vida se voltam ao passado (quase sempre muito distante) para elaborar o horror de sermos apenas uma derivação de formas de vida de outros planetas, frutos de um contágio cósmico ou de uma colonização intencional (passaremos ao largo, aqui, de interpretações pós-colonialistas que renderiam todo um outro leque de observações). Os filmes da série Transformers não chegam ao ponto de sugerir que a própria humanidade descende de alienígenas. Pelo contrário, insistem em promover o excepcionalismo humano – e norte-americano – diante da ameaça extraterrena, o clichê de tantos outros filmes de ação hollywoodianos. Mas há uma corrente subterrânea de insinuações cósmicas nesses filmes, como em tantos outros produtos de entretenimento atuais, sugerindo, de maneira subliminar, a banalidade da vida e da consciência.

Um dinossauro-robô de A era da extinção

Os dinossauros-robô de A era da extinção não são belos como os de Horizon: Zero Dawn. Assim como seus primos antropomórficos, os Transformers, são máquinas pesadas e hipertrofiadas, cheias de pontas e arestas, mais parecendo pilhas ambulhantes de estilhaços metálicos. Se os Transformers se comportam como pré-adolescentes munidos de fuzis e bazucas, os Dinobots agem como cães patetas e agressivos, prontos para explodir prédios ao menor sinal de excitação. Narrativamente, o jogo e o filme não podiam proporcionar experiências mais diversas. Horizon: Zero Dawn requer cerca de sessenta horas de exploração e interatividade para contar sua história, e as batalhas do jogador contra os dinossauros são procedimentos táticos que exigem habilidade, estratégia e paciência. A era da extinção proporciona uma fruição passiva de três horas de duração, e assisti-lo numa sala de cinema 3D é uma experiência de assalto aos sentidos e de violação de toda expectativa de consistência narrativa, o que para a maioria dos espectadores culmina com uma profunda sensação de torpor. Sob qualquer ponto de vista, o game é uma obra mais refinada que o filme. No entanto, há um sentido em que este último apresenta uma visão mais radical da posição que a humanidade ocupa no grande esquema do universo.

Este sentido está relacionado com o que Dylan Trigg, em seu livro The Thing: a Phenomenology of Horror, chama de “visão narcisista do cosmos”. A história de Horizon: Zero Dawn é incapaz de imaginar um mundo pós-apocalíptico em que o protagonismo humano foi abalado. A capacidade do homem de criar uma inteligência artificial que por sua vez seja capaz de reconstruir não apenas a civilização, mas também o próprio ecossistema terrestre de acordo com a nossa conveniência, é apresentada como uma certeza, a conclusão inevitável do progresso tecnológico. Fontes de energia e recursos minerais jamais faltarão a GAIA para levar a cabo seu projeto de restauração planetária, uma noção bastante problemática diante do conhecimento ecológico de que dispomos hoje. O game não pula em momento algum os muros confortáveis do antropocentrismo. GAIA povoa a superfície da Terra com dinossauros mecânicos, esses seres que ocupam lugar tão querido no imaginário humano. Mas por que deveríamos imaginar que uma inteligência artificial dotada de poderes quase ilimitados se ocuparia de intervir no mundo a partir da perspectiva humana? O game nunca ousa fazer essa pergunta. No mundo de Aloy, a megafauna robótica não apenas se parece com criaturas do nosso presente e passado, mas ocupa exatamente a mesma posição que os animais ocupam no mundo moderno: são autômatos cartesianos, carentes de alma, pouco mais do que elementos da paisagem que podem ser caçados para o aproveitamento de peças.

Os Dinobots são criaturas um tanto diferentes, e bem mais perturbadoras. São excrescências geradas por uma forma de vida alienígena, consciente e incorpórea, que funde criaturas pre-existentes a um metal inexistente na nossa natureza para gerar robôs paspalhos e de grande potencial destrutivo. Mas não há nada de especial nos dinossauros ou na vida do planeta Terra. O Transformium trazido por esses Criadores alienígenas agiria da mesma maneira sobre qualquer biosfera. A força que os criou é tão poderosa quanto estranha e aleatória.

Os robôs dinossauros de Horizon: Zero Dawn nos dizem que estamos sozinhos, mas somos especiais. Os robôs dinossauros de Transformers: A era da extinção nos dizem que estamos acompanhados, e não somos especiais. E a segunda mensagem não apenas é mais interessante ficcionalmente como aponta para uma visão de mundo que, dadas as ansiedades e ameaças do presente e do futuro próximo, poderá nos ajudar, ou mesmo salvar.

, , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,