Entre os filmes franceses da nova safra exibidos no Festival Varilux, um dos mais interessantes é sem dúvida Frantz, de François Ozon (em cartaz no IMS Rio nesta sexta, 16/6). O fato de ser um drama de época não tira nem um pouco de sua atualidade, muito pelo contrário: ao evocar a animosidade da atmosfera europeia logo após a Primeira Guerra Mundial, essa refilmagem livre de um clássico de Ernst Lubitsch (Não matarás, 1932), baseado por sua vez numa peça teatral de Maurice Rostand, coloca em relevo temas urgentes como o nacionalismo, a xenofobia, a dificuldade de entender e conviver com o “outro”.
A ação começa em 1919 no vilarejo alemão de Quedlinburg, onde a jovem Anna (Paula Beer) observa com estranhamento a chegada de um misterioso forasteiro que deposita flores no túmulo de seu noivo Frantz (Anton von Lucke), morto em combate. Ela descobre tratar-se do francês Adrien Rivoire (Pierre Niney), que rememora para ela os tempos em que ele e Frantz exploraram juntos a vida cultural e festiva de Paris antes da guerra.
Um quadro, um tiro
Esse ponto de partida dramático, apresentado de modo objetivo, encenado de modo clássico e fotografado num preto e branco límpido, com todo o quadro nitidamente em foco, vai revelar ao longo da narrativa um punhado de fundos falsos e de reviravoltas desconcertantes, que obviamente não cabe antecipar aqui.
Basta dizer que, ao adotar uma mise-en-scène clássica, quase convencional, e depois ir desconstruindo aos poucos a “verdade” que ela estabelece, Ozon parece instigar o espectador a desconfiar das aparências, das verdades instituídas, da imagem translúcida. Com a mesma sutileza como que a fotografia passa, de quando em quando, do preto e branco às cores (dessaturadas, em tons pastel), os fatos e os sentimentos eventualmente mudam de sinal.
Qual era, afinal, a relação entre Adrien e Frantz? O que os dois fizeram juntos em Paris antes da guerra? Qual o papel da música na vida dos dois? Onde entra certa visita ao Louvre, certa tela de Manet (O suicida) ali exposta?
No processo de depuração de Ozon/Lubitsch/Rostand, um único quadro resume todo o sentido de uma trajetória estético-existencial, e um único tiro define a guerra e seu absurdo. É em torno desses dois elementos, o quadro e o tiro, que se organizam as verdades e mentiras desse relato.
Distribuídos pela narrativa, alguns pares simétricos de cenas, como ecos ou rimas internas, chamam a atenção: duas vezes um personagem (ora Adrien, ora Anna) sente-se acuado num bar de um país estrangeiro onde se os fregueses cantam um hino patriótico; duas vezes alguém passa mal ao tocar seu instrumento; duas vezes mergulha-se num lago.
Culpa e rancorMais do que valores como a coragem e seu oposto, a covardia, que costumam povoar os filmes em torno da guerra, os sentimentos básicos que perpassam esse drama são o rancor, a culpa, a compaixão e, de um modo torto, o amor. O patriotismo é visto, essencialmente, como último refúgio dos ressentidos – tal como sintetizado no triste pretendente à mão de Anna, Kreutz (Johann von Bülow).
Com uma obra provocadora e irregular, em que policiais como Swimming pool se alternam com paródias musicais como 8 mulheres e comédias ácidas como Gotas d’água em pedras escaldantes e Potiche – Esposa troféu, quase sempre com uma estética extravagante e até estridente, esta aparente conversão de Ozon à sobriedade clássica parece ter uma dupla intenção: conferir peso e gravidade a seu tema e, ao mesmo tempo, surpreender os espectadores com uma maestria marota da convenção. É como se o diretor dissesse: vejam, sei muito bem contar uma história; tão bem que vou contá-la, desfazê-la e recontá-la de outro modo.