O Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro abriu no dia 9 de agosto a exposição Poesia marginal – Palavra e livro, em cartaz até 10 de novembro, com curadoria do poeta e consultor de literatura do IMS Eucanaã Ferraz. Estão expostas cerca de 60 publicações, sobretudo livros da década de 1970, época em que a poesia marginal teve sua grande expressão. Na abertura ocorreu o encontro de duas gerações de poetas numa leitura de poemas ao ar livre, informal.
Foi um grande barato! No último 9 de agosto, o Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro abriu a exposição Poesia marginal – palavra e livro. Ao som de Gal Costa, Jorge Mautner, Jards Macalé, Novos Baianos, Rolling Stones e tantos outros, os visitantes de cabelos grisalhos olhavam, com nostalgia e excitação, as imagens de seus contemporâneos estampadas no exterior da Pequena Galeria, enquanto um público muitíssimo jovem parecia voltar com entusiasmo a um tempo não vivido. Nas vitrines, as invenções de poetas que se dividiam entre a praia, o futebol e as livrarias: cinquenta e nove livrinhos que, quatro décadas depois, converteram-se em preciosidades. Uma leitura de poemas – ou uma artimanha, como dizia o pessoal na Nuvem Cigana – também agrupou diferentes gerações e dicções. O clima favoreceu as lembranças da década, e aqui vão alguns depoimentos colhidos naquela noite.
Nicolas Behr, poeta
No final dos anos 70 eu tinha 20 anos. E o que me motivava mesmo dentro da poesia marginal era a espontaneidade. O movimento era uma coisa não programada, muito de jovem pra jovem. Aliás, foi a primeira vez que se fez poesia de jovem pra jovem, uma ruptura. Acho que oxigenou a literatura que se fazia e aumentou muito o público leitor.
José Carlos Avellar, coordenador de cinema do IMS
O final da década de 60 e início de 70 era o momento em que tínhamos um diálogo muito forte entre artes plásticas, literatura, poesia, cinema… Era uma coisa muito misturada. Nessa época eu trabalhava na cinemateca do Museu de Arte Moderna. Ali era um ponto de reunião para quem estava fazendo arte nas mais diferentes linguagens possíveis. Você encontrava pintores, poetas, atores de teatro, atores de cinema, diretores de filme. A partir dessa troca de ideias, todos os meios de expressão se enriqueceram. Eu me lembro especialmente dessa efervescência, da troca de influências, como se um processo artístico estivesse desafiando o outro, estimulando. Daí temos textos em prosa ou poema que parecem filmes, filmes que se pretendem poéticos. Por exemplo, o Glauber estava muito junto com Oiticica, quer dizer, havia uma fusão. Quando a gente pensa na década de 70, pensa realmente na força criativa, porque seria natural que, com toda repressão existente, qualquer criatividade fosse impossível. Mas se deu exatamente o contrário. O que manteve o país vivo foi a repressão? Não, foi a criação. Então nunca existiu, na época da ditadura, um domínio efetivo dos padrões do governo, do estado, sobre as pessoas. O que houve, na expressão cultural, foi uma atividade. Por isso mesmo se fala de arte politizada, de oposição ao estado político. Até podia existir o estado político – a censura -, mas o estado humano, e todo o resto, era um estado de expressão, um estado de criação, o que acabou desarticulando a força do poder.
Creme de lua, de Charles Peixoto, e América, de Chacal
Rogério Martins (Dick), capista
Da década de 70 me lembro do Píer, das Dunas da Gal…Foi o tempo em que o pessoal começou a escrever. Rolava muita coisa no Rio de Janeiro. Tinha os eventos da Nuvem Cigana, as festas regadas a Alert Limão. Dois Alerts e era um porre na certa. Até falei com o Charles [Peixoto]: “podia ter Alert Limão” aqui no lançamento. Quanto à censura, nunca vi um problema direto dentro das armações da Nuvem Cigana ou dos lançamentos dos livros. A censura não entendia nada daquilo mesmo, então não via ameaça. E a gente também não tinha muito compromisso. Não tinha reuniões pra decidir o que se fazia. Hoje em dia você vai fazer uma capa de livro, uma capa de disco, tem reunião pra aprovar? Nos anos 70 não, a gente queimava um baseado e vamos lá, pegava uma foto que gostava… Por exemplo, a capa de Creme de lua [de Charles Peixoto] é uma tia minha, tia Áurea, dirigindo aquele carrinho. Um barato, uma fantasia poética aquela foto, aquele carro. Você não sabe se é de verdade ou se é de mentira, mas era um brinquedo que andava, um carro, tinha motorzinho e tudo. Peguei a foto, botei lá e ficou ótimo. Não tinha compromisso. O América, por exemplo, do Chacal, eu cortei com faquinha, peguei um rolinho, imitei silkscreen. A impressão era completamente pobre, ninguém tinha dinheiro pra fazer nada, as capas tinham, no máximo, duas cores, depois é que surgiu o do Bernardo Vilhena [Atualidades atlânticas], que é de silkscreen, e foi a mais rica de cores. E o formato era sempre aquele formatozinho mesmo, pequeno.
Atualidades atlânticas, de Bernardo Vilhena
Numa Ciro, cantora, compositora e artista performática
Eu me casei no final de 1968 e saí de Campina Grande para morar em Recife. Durante o período em que morava lá, entrei na universidade pra fazer psicologia, na Faculdade de Filosofia de Recife. Eu fazia psicologia, passei a ler Carmen da Silva, que nos apontou para Simone de Beauvoir e todos os movimentos da França e dos Estados Unidos daquela época. Ganhei uma grande consciência sobre o papel da mulher, sobre a libertação feminina. Toda vez que as pessoas não são ouvidas elas gritam, fazem barulho, depois é que você pode conversar. Essa me parece que foi a coisa que mexeu mais comigo no comecinho dos anos 70. Depois, em 76, pela primeira vez no Brasil, desde que houve o golpe da ditadura militar, abriram-se os diretórios acadêmicos e eu fui a primeira presidente do diretório da minha faculdade. Foi muito interessante esse momento também pra mim: a descoberta da esquerda, do comunismo, da luta de classes… E um dia, que tem a ver com o dia de hoje, chego numa grande livraria, chamada Livro Sete, em Recife, e encontro a antologia 26 poetas hoje, de Heloísa Buarque de Holanda. Eu comprei aquele livro em 76 e descobri todo esse movimento marginal daqui do Rio de Janeiro. Incrível! Em 2009 defendi uma tese chamada Nas quebradas da voz – o lugar e a mãe na crônica poética do rap, e quem foi minha orientadora? Heloísa. Eu e ela criamos a Universidade das Quebradas a partir dessa tese. E ela me dá um autógrafo mais de 30 anos depois. Esse livro veio comigo a vida inteira. Então estou arrepiada, porque o 26 poetas hoje me acompanha, me faz estar aqui com Eucanaã, nesse lançamento importante, nessa noite. Estou aqui porque me sinto marginal também e tudo isso tem a ver comigo.
António Pinto Ribeiro, professor, conferencista e programador cultural
Em 70 eu estava no Liceu de Portugal, estudando, e a coisa mais marcante foi a Revolução de Abril, a Revolução dos Cravos. Foi um acontecimento inesperado, completamente surrealista. E todas as imagens e recordações que tenho dessa época são de ocupação do espaço público, ocupação de casas para dar às pessoas sem teto, ocupação de quintas agrícolas para oferecer aos trabalhadores. Lembro também de que de repente toda a gente começou a fazer teatro, porque teatro parecia uma forma muito revolucionária e, ao mesmo tempo, pedagógica para explicar nas empresas, por exemplo, o que era capitalismo. E explicávamos às empregadas de casa o que era o marxismo através de peças. Havia alegria nas pessoas que recebiam o teatro nas escolas, nas fábricas, e até dança contemporânea para as grandes empresas de siderurgia nacional. Com franqueza, a encenação não era necessariamente boa, mas o ímpeto da criação didática era muito bonito. Depois surgiram pessoas fantásticas desses grupos. Outra coisa interessante é que tudo era muito anárquico. Às vezes, as reuniões demoravam sete, dez, quinze horas, porque não havia liderança, então tinha que ser discutido. Essa ideia de participação foi importante para as pessoas aprenderem a reivindicar, reclamar, discutir no espaço público. Foi um acordar para um mundo que não conhecíamos, porque nada daquilo estava previsto, cada dia se construindo, se inventando? Você não sabia o que ia fazer no dia seguinte. Nessa época, também, Portugal era uma miragem para os países da América Latina, que viviam quase todos em regime fascista. Então um monte de chilenos foi viver em Portugal, brasileiros, argentinos, tentando realizar o que em seus países não podiam, e a comunidade portuguesa acabou recebendo muita influência. E a cor que a gente lembra mais é o vermelho, claro.
Elizabeth Pessoa, coordenadora do centro cultural IMS-RJ
Entrei na faculdade, na ECO, em 73, e o Chacal era meu colega de classe. A gente ia a muitos shows, muitas festas, muita música boa, ao Píer de Ipanema. A vida era muito feliz no Rio de Janeiro. A gente conseguia ter uns escapismos, seja pela poesia, seja pela música, seja pelo teatro, para poder sobreviver àquilo tudo. Nessa época fiz uma viagem pela América Latina e comecei a ter acesso à literatura que era proibida aqui. Apesar de toda a censura, a gente driblava isso muito bem. Lembro de não ter aula na faculdade, era barra pesada. E a gente, naquele momento, se reunia. As pessoas eram unidas, numa tentativa de viver de uma maneira mais leve. Por isso havia um clima de solidariedade, os grupos, os coletivos, que até podemos ver na exposição.
Hiluz del Priore, jornalista
Em 1970 eu fazia jornalismo na PUC e estava na redação do Correio da Manhã. O dops ficava ao lado e as pessoas na redação às vezes se perguntavam: “cadê fulano?” Foi tomar um café e nunca mais voltou. Era uma época muito boa, apesar da gente não saber exatamente quem era quem. Minha mãe, burguesona, ficava apavorada, mas era uma maravilha. Ainda peguei os grandes jornalistas na redação. A mídia impressa na época era sensacional, importantíssima. O Jornal do Brasil era quase alternativo, O Globo era aquela coisa empoeirada e o Correio da Manhã vivia da glória dos tempos áureos. Minha ida para o Correio foi uma entrada num mundo novo, realmente espetacular. Gabeira, a essa altura, estava no JB, tinha acabado de sequestrar um embaixador, e foi meu professor também. Eu me lembro de Torquato Neto e Nelson Rodrigues irem à redação. A poesia do Waly Salomão, do Torquato, veiculavam ali da mesma forma que o Lêdo Ivo escrevia editorial. Mas eu olhava pelo buraco da fechadura, não por uma questão de idade, mas porque eu não era da marginalidade, era da PUC, da bolha. Complicado, mas é isso.
Galeria de imagens do evento, com fotos de Paulo Jabur: