Transgressão e visibilidade

Colunistas

30.01.12

Por coincidência, os dois filmes que vi durante minha passagem recente por Bruxelas tratavam de sexo e dinheiro. E um parecia ser o desdobramento moral do outro. Shame, de Steve McQueen, acompanha a rotina de um executivo viciado em sexo, em Nova York. Sleeping beauty, de Julia Leigh, conta a história de uma jovem universitária, na Austrália, que é contratada para dormir, sob efeito de soníferos, com velhos impotentes que se servem do seu corpo desfalecido para exercitar, sem constrangimento nem penetração, o que lhes resta de fantasia. O melhor conselho que a cafetina dá à menina ao contratá-la é: “Não transforme isso em carreira”. É exatamente o contrário do que faz o anti-herói de Shame. Afinal, numa cidade onde tudo está confundido com o trabalho, o prazer ou é profissional ou é vício.

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Cena do filme Sleeping beauty (2011), de Julia Leigh

O apartamento onde vive o protagonista do filme de McQueen pouco se diferencia do escritório onde ele trabalha. São ambientes assépticos, claros, quadrados, em prédios de vidro, desprovidos de qualquer excesso. O sexo pode ser excessivo em si mesmo, já que só produz falta, é pago e masturbatório, sem a interferência de nenhum elemento que não seja exclusivamente sexual. Quando tenta esboçar algum tipo de vida amorosa, convidando a colega de trabalho para jantar, o executivo fica impotente. Para ele, é ou sexo ou amor, as coisas não se misturam. O dinheiro e o profissionalismo “purificam” o sexo do excesso dos sentimentos. O sexo confundido com amor é impuro – e tudo o que é impuro é mais complicado, a exemplo da irmã suicida do executivo, que ainda tenta, desesperadamente, acreditar no amor em meio a esse universo minimalista, onde tudo foi reduzido a carreira e rotina. A ela também só resta compensar a frustração com algum tipo de vício.

O britânico Steve McQueen e a australiana Julia Leigh eram respectivamente artista plástico e escritora antes de começar a fazer cinema. Os dois filmes (que devem estrear em breve no Brasil) são perturbadoramente autorais, o que é um alento num mundo disposto a dissolver, sob o pretexto das melhores intenções democráticas, os excessos da autoria individual na normalidade das ações coletivas. Shame e Sleeping beauty são demasiado singulares para serem reduzidos a algum tipo de norma.

A imaturidade emocional e a decrepitude psíquica do personagem boa-pinta de Shame, abduzido pelo trabalho a ponto de só reproduzir rotina, pragmatismo e profissionalismo onde deveria haver prazer e possibilidade de transgressão, se contrapõe à maturidade, ao desencanto e à decrepitude física dos velhos de Sleeping beauty, que tentam reproduzir prazer e transgressão onde e quando isso já não é possível. O sono remunerado da bela adormecida do título permite a esses personagens repugnantes encenar suas taras sem nenhum testemunho, nenhuma visibilidade. Eles pervertem a realidade, constroem um espaço de realização imaginária fora ou para além da realidade visível. Enquanto no universo imaculado de Shame, o mais perturbador é que as fantasias do protagonista foram esterilizadas pela dimensão mecânica da sua realidade profissional. Já não existe outra dimensão de prazer e perversão, porque a fantasia apenas reproduz o círculo vicioso da realidade visível.

É claro que o mundo menos fantástico de Shame se aproxima muito mais do nosso. É um filme mais realista e verossímil. É fácil reconhecer a rotina do sujeito que passa os dias no escritório atrás de uma tela de computador e que reproduz em casa o mesmo comportamento, acessando sites de sexo e de relacionamento, se masturbando diante do computador. É um mundo exibicionista e autorreprodutivo, onde tudo é visível (menos a morte) e onde o sujeito está condenado a mostrar sempre mais. A transgressão foi reduzida a reproduzir o que se vê. Depois de ver um casal transando na janela de um prédio de vidro, o executivo paga para uma puta fazer o mesmo com ele. É o princípio do ver e ser visto.

O mesmo não pode ser dito sobre Sleeping beauty. Não há nada rotineiro na situação da pequena prostituta. O filme se constrói como uma fábula. E por representar um mundo que só é visível no âmbito da imaginação e da fantasia, talvez diga mais sobre a perda do que Shame. Quando a menina, desobedecendo, por curiosidade, as regras de trabalho estabelecidas pela cafetina, instala uma câmera minúscula na alcova, para afinal ver o que lhe acontece durante o sono, termina por descobrir, horrorizada, que a realidade da fantasia é bem diferente do que ela imaginava: os velhos clientes repugnantes, que projetam na menina o que perderam – a juventude, as mulheres mortas -, vêm, na verdade, morrer ao seu lado. Ao transgredir as regras, a menina passa a entender a diferença entre realidade e fantasia, mas também que imaginação e fantasia são um caminho para a consciência da morte que a rotina viciosa do trabalho tenta, em vão, apagar. É a pequena transgressão das regras do trabalho que lhe permite afinal acordar e entender o que significa estar viva, enquanto o executivo de Shame está condenado a sonhar para sempre a imortalidade esterilizada do seu pesadelo, cego para a morte que o cerca por todos os lados.

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