Quase três anos depois de ser premiado no Festival de Brasília, chega finalmente ao circuito exibidor o intrigante Exilados do vulcão, primeiro longa de ficção de Paula Gaitán, que anteriormente realizara os ensaios documentais Diário de Sintra (em torno dos últimos anos de Glauber Rocha), Vida (sobre a atriz Maria Gladys) e Agreste (sobre Marcélia Cartaxo).
Há algo de impalpável em Exilados do vulcão, uma qualidade fluida e inapreensível que se anuncia em suas primeiras imagens: uma longa panorâmica das montanhas de Minas sob uma espessa névoa. É que a substância de que será feita essa narrativa, conforme ficamos sabendo pela lacônica locução em off, é a memória, ou antes a tentativa de reconstrução da memória.
O que há de “objetivo”, como ponto de partida, é um incêndio em que se destruiu quase tudo o que constituía a identidade e a história de um fotógrafo (Vincenzo Amato). Sobraram um diário e uma porção de fotos. É a partir desses poucos vestígios que a sua amada (Clara Choveaux) buscará reconstruir a trajetória do desaparecido (ou desmemoriado?).
Arqueologia dos afetos
Ela, a mulher, se aproximará então dos seres, lugares e vivências registrados em palavra ou imagem pelo homem amado. No filme, essa busca se dá tanto no presente como no passado, tanto no plano concreto como no da imaginação, com uma desconcertante liberdade de construção.
Nessa arqueologia dos afetos – em que não por acaso são frequentes as referências à mineração, à prospecção, à escavação – o encadeamento das sequências se dá menos por nexos narrativos, consecutivos, do que por associações plásticas e afetivas. Há uma porosidade permanente entre o mundo interior da protagonista que busca e o território por onde ela transita.
É um “filme de cinema”, para usar a expressão enganosamente tautológica de Rogério Sganzerla, o que significa que não é teatro nem literatura (embora se nutra dessas linguagens), é algo que só existe na tela e para a tela, em que a luz não apenas ilumina a cena, mas a constitui. Um exemplo eloquente é a sequência em que a protagonista surpreende o amado (ou assim elabora em sua fantasia) com uma amante na sala escura de revelação de fotos, sob a luz vermelha. Em choque, ela recua para a sombra, sua imagem vai se diluindo, como numa pintura estilizada, até se fundir no fundo negro. É um plano cinematográfico memorável.
Há em Exilados do vulcão uma poética dos espaços e dos deslocamentos que remete a Antonioni, ainda que Tarkovski e Kiarostami sejam outras referências perceptíveis. Como em seus filmes anteriores, Paula Gaitán parece interessada no hiato entre as coisas e a imagem das coisas. Sobre um horizonte recortado de montanhas, a mulher estende uma fotografia do mesmo local. Diante do pedaço de afresco (Piero della Francesca) numa parede em ruínas, um jovem casal reproduz com seus gestos a cena pintada.
Corpo e paisagem
Uma operação análoga consiste em filmar o corpo humano como paisagem e a paisagem como corpo humano, conforme se enfatiza especialmente em duas cenas: numa delas, miniaturas de animais são dispostas sobre um corpo nu; na outra, os contornos de uma mulher deitada numa cama são como que mimetizados pela linha das montanhas no horizonte, vistas ao fundo por uma janela envidraçada. Diga-se entre parênteses que, a par da fotografia deslumbrante de Inti Briones, a escolha das locações é muito inspirada: pontilhões de ferrovia, crateras de minerações extintas, vales brumosos, vidraça panorâmica que paira à beira da grande cidade (Belo Horizonte) etc.
O movimento de câmera que mais se repete no filme, quase como uma figura de estilo, é a panorâmica que desvenda, perscruta e, não raro, surpreende. Um exemplo: numa das primeiras sequências, o protagonista está à beira de uma enorme cratera de mina, em cujo fundo se formou um lago. Só perto do final do filme uma panorâmica iniciada nessa cratera revelará que ela está à beira da cidade e não na paisagem inóspita e lunar que tínhamos sido levados a imaginar.
Em Exilados do vulcão tudo muda a partir de um movimento do olhar ou de uma mudança de luz. À fluidez da passagem entre presente e passado, fato e memória, realidade objetiva e mundo interior, corresponde a fluidez do deslocamento da câmera pelos espaços – e a fluidez do próprio espaço. Os estados de transição predominam, até mesmo entre os quatro elementos: a bruma (fusão de água e ar), a poeira (ar e terra) e a fumaça (fogo e ar).
Exilados do vulcão, em suma, é uma experiência sensorial, uma viagem dos sentidos e da imaginação. Quem estiver à procura de uma “história bem contada, com início, meio e fim” deve buscar em outro lugar. Aqui é filme de cinema e não tem conversa.