O diretor Olivier Assayas

O diretor Olivier Assayas

Cinema, matéria e espírito

No cinema

10.03.17

Apesar de ter conquistado o prêmio de direção em Cannes, Personal shopper, de Olivier Assayas, não foi muito bem recebido pela maior parte da crítica, segundo relatos jornalísticos do festival. Neste caso, vou trafegar na contramão, pois o filme me pareceu no mínimo formidável.

Mas é possível compreender o desconcerto que ele provoca. A exemplo de sua protagonista – a jovem americana Maureen (Kristen Stewart) –, Personal shopper tem uma qualidade fugidia, metamórfica, de difícil enquadramento. Quem tentar inseri-lo num gênero ou numa forma definida sairá frustrado ou perturbado.

Maureen trabalha na França como compradora de roupas e acessórios para Kyra (Nora von Waldstätten), uma celebridade de nacionalidade e ocupação indefinidas (modelo? socialite? cantora? atriz?) que quase não aparece na tela. Insatisfeita, a moça tem um namorado que quer levá-la para Omã, onde está trabalhando temporariamente numa embaixada. Mas ela decide ficar na França à espera de um sinal do irmão gêmeo morto recentemente. Assim como ela própria, o irmão tinha poderes mediúnicos, e os dois fizeram um pacto: o primeiro que morresse entraria em contato com o outro.

A tecnologia e o sobrenatural

Assim como Maureen oscila entre o mundo material (o consumo, as lojas, os euros, as viagens de trem e automóvel) e o mundo espiritual, o filme de Assayas transita transversalmente entre gêneros: o filme de fantasmas, o policial, o drama psicológico, a crônica social. O gêmeo morto, a etérea Kyra, o namorado distante, todos são como que fantasmas que balizam os movimentos da protagonista.

Um dos achados sagazes de Assayas é o de enfatizar o caráter fantasmático de nossa modernidade virtual: mensagens de celular vindas sabe-se lá de onde, imagens que viajam pelo éter e surgem como ectoplasmas diante de nossos olhos. Nesse contexto, uma tela de smartphone pode ser um portal para o além. É a atualização, por meio da tecnologia, de crenças, desejos e temores ancestrais. E o que é o cinema de invenção, desde Méliès, senão essa tentativa de tornar visível o invisível, de conferir uma presença àquilo que só existe no sonho ou na imaginação?

Assayas não recua diante do risco do ridículo de mostrar, ainda que brevemente, um fantasma “clássico”, branco, translúcido e vaporoso. Também realiza a operação inversa, ao tornar invisível o visível, numa sequência intrigante e crucial que se passa num saguão de hotel.

Cineasta culto e cinéfilo (começou como crítico dos Cahiers du cinema), elabora como subtexto um diálogo com a tradição de artistas que exploraram as relações com o oculto, como o escritor Victor Hugo e a pintora abstracionista Hilma af Klint. Mais indiretamente, reverbera o cinema espiritual de Dreyer e o Hitchcock de Um corpo que cai.

Ao contrário do irmão, que acreditava firmemente no espiritismo, a racional Maureen hesita e questiona até o fim. “É você, Lewis? Ou sou apenas eu mesma?”, pergunta ela a certa altura, desconfiando que os supostos sinais da presença do irmão morto talvez sejam projeções de seu próprio inconsciente. Mas o filme faz balançar uma leitura materialista ou psicanalítica ao nos mostrar fenômenos que ocorrem às costas da protagonista. Se projeção há, é a dos nossos próprios desejos e temores, propiciada por esse meio (ou médium) prodigioso que é a câmera de cinema.

[Personal Shopper será exibido no cinema do IMS do Rio de Janeiro a partir de 16 de março].

Hiroshima meu amor

Por falar em prodígio, está voltando a cinemas selecionados de seis capitais brasileiras, em cópia restaurada, a obra-prima Hiroshima meu amor (1959), primeiro longa-metragem de ficção de Alain Resnais e também o primeiro roteiro da escritora Marguerite Duras.

Quem não viu não pode perder e quem viu certamente vai querer revisitar esse filme inesgotável, que rompeu as fronteiras entre ficção e documentário ao narrar a fugaz história de amor entre uma atriz francesa (Emmanuelle Riva) e um engenheiro japonês (Eiji Okada), ambos marcados pela guerra: ele perdeu parentes e amigos na destruição de Hiroshima, ela foi execrada pela população de sua cidade e encerrada num porão pela família por ter-se relacionado com um soldado alemão durante a Ocupação.

Rodado num preto e branco pleno de matizes, cadenciado pelo texto poético de Duras, pela música hipnótica de Georges Delerue e Giovanni Fusco, pelos travellings elegantes que seriam marca registrada do diretor, o filme de Resnais entrelaça como poucos o drama pessoal ao destino histórico dos povos, sem baratear nem uma coisa nem outra. Diante disso, só resta ao crítico dizer, repetindo o título daquele belo filme de Elem Klimov: vá e veja.

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