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Caro Sérgio,
Sim, claro, Jung. Você não reparou, mas eu disse que foi ele que comentou os escritos da filha esquizofrênica do Joyce. Aliás, devo ter lido isso no livro do Ricardo Piglia que você citou, ou ouvido da boca do próprio, numa palestra dele na Folha de S. Paulo, alguns anos atrás. O Piglia é um autor que me agrada muito, como ficcionista e como pensador da literatura. Há outro livro luminoso dele em português, chamado O laboratório do escritor.
Sobre o Piglia eu tenho uma história interessante. Em 1996, fui a Buenos Aires para fazer uma matéria especial sobre o legado literário de Borges, dez anos depois de sua morte. Entre outras pessoas que tinham muito a dizer sobre ele (a viúva Maria Kodama, o amigo Bioy Casares, a biógrafa e secretária Maria Esther Vásquez etc.), conversei com Piglia. Ele me contou então que, na juventude, tinha feito uma entrevista com o Borges que nunca fora publicada. “Tenho as fitas e as transcrições em algum lugar”, disse, abrangendo com um gesto a bagunça do seu escritório de trabalho.
Voltei para o hotel e contei isso por telefone ao meu então editor no caderno Mais! da Folha, o Alcino Leite Neto. “Uau! Uma entrevista inédita do Borges para o Piglia? Diz para ele que pagamos mil dólares por ela”, disse o Alcino. Liguei de novo para o Piglia. Foi a vez dele se espantar: “Uau! Mil dólares! Por esse dinheiro eu sou capaz de inventar uma entrevista inédita do Borges.” Não duvido que fosse mesmo, mas o fato é que ele procurou em vão a tal entrevista, e tivemos de nos contentar com um artigo inédito dele sobre o mestre. Brilhante, por supuesto.
Agora a questão das cartas e das novas tecnologias. Sua deliciosa evocação dos envelopes com a borda verde e amarela me fez lembrar da minha primeira viagem à Europa, em que eu, na extrema penúria, me hospedava em albergues da juventude e pegava de quando em quando a correspondência vinda do Brasil nas “postas-restantes” dos correios de cada cidade. A visão daquele envelope familiar (em que vinha escrito, como você deve lembrar, “via aérea – par avion“) fazia meu coração bater mais forte.
Você fala do GPS, do celular com tela de TV e de outras engenhocas do nosso tempo. Acho que temos a sorte de ainda nos maravilhar com essas coisas que vemos surgir a cada dia.
Comecei a carreira jornalística na máquina de escrever, mas logo as redações se informatizaram. A primeira rede de computadores da Folha não era muito confiável. Dizia-se que era de fabricação paraguaia. Não tenho certeza disso, mas sei que a todo momento as matérias sumiam das telas, perdiam-se dias inteiros de trabalho, era um deus nos acuda na redação.
Lembro-me nitidamente de uma noite em que, próximo do horário de fechamento do jornal, o sistema deu pau. Simplesmente parou, como um carro que “morre” por falta de bateria. Uma cena para não esquecer: o diretor do jornal, Otavio Frias Filho, e os dois secretários de redação, parados em silêncio, perplexos e expectantes, diante do terminal inerte da primeira página. Como selvagens ao pé de um totem, à espera de um milagre. No fundo, acho que nosso maravilhamento com os prodígios tecnológicos tem algo do respeito religioso dos primitivos diante do desconhecido.
Quando vi o 2001 do Kubrick, na pré-adolescência, fiquei encantado com o “telefone com imagem” usado por um dos protagonistas para falar com a família a partir de uma estação espacial. Hoje, com o Skype, o Msn e outros instrumentos de conversa com imagem, isso é banal. Mas as viagens espaciais tripuladas, ao contrário, não foram além da Lua, aqui pertinho. Um estudo fascinante, que certamente alguém já fez, é passar em revista as visões do futuro oferecidas pela literatura e pelo cinema em cada época. No passado, o futuro era bem mais bacana.
Uma das coisas mais bonitas da sua carta foi a analogia que você fez entre o voo do paulistinha, “pilotado na mão e no visual”, com a escrita a caneta. O encanto do artesanal, do corpo a corpo com a matéria, é algo que não tem preço e que talvez esteja se perdendo.
No mais, obrigado pela dica do livro do Ivan Sant’Anna sobre desastres aéreos. A julgar pelos outros dele, deve ser muito bom. Vou procurar. Quem sabe o leio, por puro masoquismo, na minha próxima viagem de avião.
Grande abraço,
Zé Geraldo
* Na imagem da home que ilustra este post: cena do filme 2011 – Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick