“Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar.” A primeira frase de Dias de abandono antecipa a partida de Mario, disposto a colocar um ponto final no casamento de quinze anos com Olga. O truque de sugerir tanto uma determinada atmosfera quanto sua fragilidade, concretizado já no parágrafo de abertura, será reproduzido diversas vezes ao longo deste livro da italiana Elena Ferrante. No início, cada detalhe está ali para reforçar a domesticidade prestes a ruir: as crianças brigam, o cão dorme, o casal discute. O teor da discussão, cujo gatilho é a ameaça de Mario de abandonar (e desfazer) a cena, é o que garante a instabilidade. Passando da intenção à ação, deixando Olga “como uma pedra ao lado da pia”, ele parte.
Se Ferrante não cria uma situação para então dissolvê-la, mas, ao contrário, estabelece a precariedade de saída, também a inconstância de Olga está presente desde as páginas iniciais. Essa inconstância não é, ou não necessariamente, um traço negativo: sugere o princípio de uma travessia turbulenta depois de um longo período de estagnação. As palavras-chave de Dias de abandono: devir, transitório, contingente.
Ao leitor, porém, apenas uma parcela dessa transformação de Olga está disponível. Não há muitos indícios de quem foi a narradora antes da partida de Mario. Por mais que tenha a intenção de revisar o passado em busca de respostas, Olga não pode reassumir a antiga perspectiva para então narrar a partir dela. A ruptura é brutal. A fim de reconstruí-la, e também à própria reação a essa ruptura, o relato de Olga segue um fluxo irregular onde cabem digressões, descrições, lembranças, projeções e delírios.
O enredo de Dias de abandono é banal. Elena Ferrante, uma autora habilidosa, aspira a essa banalidade. Por surgir na superfície, é a única coisa que o leitor apressado enxerga. (Quando escrevo sobre algum de seus livros, tento não perder de vista o fato incontestável de que Elena Ferrante está no mínimo cinco passos à frente da crítica. Se você entendeu Ferrante facilmente, você não entendeu nada). Olga se aproxima da meia-idade. Os dois filhos ainda são pequenos. Por insistência do então marido, um engenheiro, o tempo de Olga é gasto entre os cuidados com a casa e com as crianças. Tudo desmorona quando Mario resolve trocar a rotina familiar por uma vida ao lado de Carla, a amante mais jovem.
Ao analisar a situação em retrospecto, o que pode ou não ser apenas um truque da memória, Olga percebe indícios de que o casamento não ia bem. Tarde demais. Pela segunda vez em quinze anos, Mario expressa “um vazio de sentido”. O afastamento agora é definitivo. Olga sofre o que se poderia chamar de um colapso nervoso. O problema é que ela precisa cuidar de dois filhos e um cachorro. E, no estado em que ela se encontra, até um passeio no parque pode ser perigoso.
Pelo pouco que se pode inferir do passado de Olga, é seguro dizer que (por comodismo ou desinteresse) suas escolhas não são exatamente conscientes. Ela encontra um marido. Tem filhos. Aceita a presença de um cachorro que sequer deseja. Em outras palavras, segue um roteiro conhecido. Numa passagem, dá a entender que não compreende como ou por que o relacionamento com Mario teve início. Por que nos apaixonamos por alguém?, pergunta a protagonista. Parece não saber. A nota dissonante em meio a tantos clichês é o desejo de Olga, até então pouco explorado, de ser escritora. Já é uma boa leitora.
O caso é que Olga não quer se parecer com algumas das personagens que encontra nos livros que lê — mulheres “cultas, de boa condição social, [que se quebram] feito bibelôs nas mãos de seus homens distraídos”. Na ficção que deseja escrever, e que todavia não escreve, seriam admitidas somente “mulheres com muitos recursos, mulheres com palavras indestrutíveis”. A literatura com que Olga sonha, insinua Ferrante, é rasa, panfletária e enganosa. Não existem, afinal, palavras indestrutíveis, como a protagonista descobre assim que Mario desfaz, com uma facilidade assombrosa, um compromisso que para ela era vital.
Numa passagem reveladora, Olga confessa não saber os nomes das árvores do parque em frente ao prédio. “Se tivesse de escrever, não teria conseguido”, diz. Para quem deseja reorganizar a realidade a partir dos artifícios da linguagem, sua falta de curiosidade é alarmante. Se, como afirma um personagem periférico, Olga é realmente uma mulher sensível, sua sensibilidade — junto com algumas capacidades e características — esteve adormecida durante um bom tempo. Coletando as poucas informações disponíveis, entendemos que ela permanecia imersa na própria rotina, tão avessa ao pensamento e à reflexão quanto possível. É como se Olga intuísse que algumas coisas não resistiriam a um exame demorado. Se parasse o que quer que estivesse fazendo, pensaria na própria vida. Se pensasse, poderia desmoronar.
Olga só consegue avançar na escrita do livro depois da partida de Mario. Tudo leva a crer que as atividades de mãe e dona de casa não a absorviam por completo, tampouco eram incompatíveis com a escrita. O caso é que Olga, presa a uma rotina monótona, com pouca intimidade consigo ou com o mundo, nada tinha a dizer. Uma vez que a imaginação deriva diretamente da curiosidade, e que sem alguma dose de imaginação não há literatura, Olga permanecia como que paralisada. Não se trata de ver aí uma versão romântica da criação artística — segundo a qual o sofrimento molda e aprimora o escritor —, mas de dar o devido peso à experiência libertadora da protagonista. Olga deu alguns passos em direção ao autoconhecimento: garantiu certa intimidade com o próprio corpo, passou a prestar atenção naquilo que antes não lhe despertava o interesse. Poderia ter se tornado escritora se não fosse a partida de Mario? Se algo a forçasse a encarar a realidade, sim. Nesse caso, porém, algumas pistas deixam claro que talvez fosse Olga a pedir o divórcio.
Quando tudo desmorona, uma nova linguagem se abre para a protagonista. O colapso destrói, ainda que apenas por algumas semanas, a máscara de civilidade de Olga — que ela deseja ver não como o adereço frágil que é, mas como um traço consistente de personalidade. O rompimento das barreiras franqueia o acesso a um arsenal antes inexplorado. Num instante a linguagem diplomática, sempre pronta a mediar e agradar, é substituída pela linguagem ferina e obscena. Ao utilizá-la, Olga abre mão do distanciamento e, em consequência, de qualquer garantia de prudência, discrição e autopreservação. Quando se deixa levar pela obsessão de imaginar o ato sexual de Mario e Carla, a narradora se serve de um vocabulário que reforça o cenário hipotético que para ela é doloroso.
Como é comum a todo relato de separação, Olga também se pergunta ao lado de quem viveu por quinze anos. Chega à conclusão de que não sabe quem é Mario. “Não sabemos nada das pessoas, nem mesmo daquelas com quem partilhamos tudo.” Segundo a narradora, somos o instante, apenas “vibração das cordas vocais”, e por isso mesmo as palavras são enganosas. Quando encontra a linguagem ajustada ao colapso — chula, agressiva, direta —, Olga a utiliza até esgotá-la, e em seguida a abandona como uma roupa que não serve mais. Mas será que todo mundo é tão oscilante quanto ela? Seria possível moldar a linguagem à ocasião? Seria possível usar a linguagem como escudo?
Como observa Olga, “para contar é necessário, antes de qualquer coisa, tomar distância”. Por esse motivo a narradora, em alguns dos momentos mais tensos do relato, transita com fluidez da primeira para a terceira pessoa. Aqui Olga começa a driblar algumas verdades incômodas, sem ir até o fim no autoenfrentamento. Ela tira a venda. E torna a colocá-la. Olga avança aos trancos, tirando conclusões efêmeras, não raro equivocadas, e dedicando aos filhos e ao cão a pouca atenção de que dispõe.
Eis que tudo se encaminha para uma tensão insuportável. Uma vez desfeita, acreditamos que trará a resolução esperada. É uma manhã quente de agosto. Na noite anterior, Olga e o vizinho músico, Carrano, fizeram ou tentaram fazer sexo — uma experiência que ela não pretende repetir. Está claro que Olga chegou ao limite da dor. Ao mesmo tempo em que é refém dos próprios pensamentos obsessivos, Olga também permanece trancada, com os filhos e o cachorro, no apartamento. As novas fechaduras da porta da frente não cedem.
As coisas saem rapidamente do controle. Gianni, o filho, tem febre alta. Otto, o cachorro, que talvez tenha ingerido estricnina, agoniza. É desesperador observar a narradora, oscilante, tentando manter algum contato com o que se passa ao redor. É tudo em vão. Depois de uma agonia que talvez pudesse ser revertida ou abreviada, mas que acaba prolongada pela falta de cuidados, o cachorro morre nos braços de Olga. Quando vem, a resolução parece apressada, e a necessária catarse da protagonista soa insuficiente ou inconclusiva. Seria uma falha na narrativa de Ferrante ou uma confissão de que o colapso e a recuperação nem sempre seguem uma lógica possível de ser rastreada e relatada?
A morte de Otto não ameaça atirar Olga novamente no abismo da angústia e da dor, mas a liberta. A culpa que Olga afirma sentir é aplacada pela ideia reconfortante, ainda que infantil, de que o fantasma do animal continua vagando por ali. É um bom exemplo do que tende a passar despercebido na escrita de Ferrante. A obsessão por imaginar o cão morto correndo pelo apartamento seria uma espécie de devaneio em que não se deve prestar atenção ou revelaria algo mais inquietante sobre a personalidade da narradora?
Mais do que buscar a confirmação da culpa, Olga busca ser confortada e consolada. Para ela, Otto é apenas uma coisa, um objeto entre tantos, um elemento de cenário, um saco de pancadas, um catalisador. Por maior que seja a importância do cão no andamento da trama, é uma importância mais próxima de um utensílio do que de um personagem secundário. Olga tenta expressar o contrário, mas não convence.
Numa cena estranha, Olga, usando a coleira do cachorro, para em frente ao espelho e ameaça desabar. É quando a empatia se manifesta, ainda que por poucos segundos. Nesse momento Otto, já morto, passa a adquirir alguma realidade para a narradora. Por mais que Olga se aproxime de um punhado de verdades ao longo do período em que tenta assimilar o abandono, nem sempre é capaz de olhar de frente para aquilo que a cerca. Mas ali está ela, com a coleira de Otto em volta do pescoço, prestes, por um milésimo de segundo, a ter outro colapso.
Seja quem for Elena Ferrante, sabemos que seu conhecimento dos clássicos, em especial da tragédia grega, é bastante amplo. Assim, não parecem casuais os paralelos entre seu pequeno e a Hécuba de Eurípides. Como Olga, Hécuba acreditava que era possível manter a fibra moral mesmo em situações adversas. Quando perde os dois filhos, porém, a troiana sucumbe. O rival Poliméstor prevê que ela se transformará em um cão.
À medida que a tragédia de Eurípedes avança, concretiza-se aquilo que a filósofa norte-americana Martha C. Nussbaum chama de “o declínio de Hécuba”. Em A fragilidade da bondade, Nussbaum comenta “a admissão de Hécuba de que nossos valores centrais são simplesmente humanos e, no interior do mundo humano, sociais”, o que a deixa “em uma posição vulnerável”. Essa ideia de transitoriedade, que no fundo é o temor da precariedade — de novo: devir, transitório, contingente —, é a chave de Dias de abandono.
As últimas páginas são as mais reveladoras do livro. É fácil acreditar que se está diante de uma comédia romântica quando não se conhece a escrita de Ferrante. Olga aceita acompanhar uma amiga a um concerto. Ali descobre que Carrano, o vizinho, é um dos integrantes da orquestra. Só naquele momento ele lhe parece atraente. Olga não gosta de Carrano pela gentileza que demonstra, mas pela “oscilação entre a figura do homem triste e sem cores e aquele virtuoso executor de sons luminosos”. Muito mais do que a oscilação em si, o importante é ter um polo que permita essa oscilação. Sem esse verniz de sucesso, Carrano não significa nada para Olga. Até esse ponto, a narradora não esconde nem de Carrano e nem do leitor que o vê como um fracassado.
Recuperada, resolve dar uma chance ao vizinho. Sobre o colapso, confessa a Carrano que “não havia profundidade” naquilo. E não havia, ou não exatamente. Porque assim é Olga: até o mergulho em si mesma tem um limite e um prazo de validade. Por isso o final ganha uma ressonância inquietante. Olga agradece à capacidade de Carrano de “inventar um sentimento de plenitude e alegria” para os dois. E, como admite em seguida, finge acreditar na ficção do vizinho. Um arremate perfeito para algo que vinha se delineando há algum tempo — uma imaturidade e uma fragilidade que, antes que possam dar lugar à outra coisa, terminam reforçadas. Olga se casa com Mario sem saber ao certo com quem irá viver, e talvez, sugere Ferrante, possa fazer o mesmo com Carrano.
A transitoriedade que serve de ruído de fundo para Dias de abandono, e que de início parece a transitoriedade de Olga em busca de si mesma — da debilidade anímica rumo a algo mais concreto —, atinge seu ponto culminante. O que se delineia, porém, é a transitoriedade das relações afetivas. Para Olga, que deseja ser escritora mas não acredita no poder das palavras, que consegue ajustar a linguagem à situação, que não confia que os vínculos possam ser mais do que temporários e banais, tudo continuará a ser apenas vibração das cordas vocais. Não há compromissos vitais. Não há nada fixo. Do ex-marido ao cão, não enxerga o outro para poder dar a ele alguma materialidade e alguma permanência.
Tentei encontrar e remover, das subcamadas mais profundas da escrita de Ferrante, alguns sentidos que podem ter sido deixados ali de propósito, mas que com a leitura rápida tendem a passar despercebidos. O que talvez sinta o leitor de Elena Ferrante, e que pode estar na raiz do levante contra o jornalista que investigou as contas bancárias de Anita Raja, é que o mistério maior é aquele de sua escrita. Este texto não deixa, portanto, de ser uma pequena homenagem ao gênio de Ferrante, cujo mistério está ao alcance dos leitores em qualquer livraria que se preze, desde que se dê a ele o tempo, a paciência e a generosidade que merece.
No mais, é preciso dizer algumas palavras sobre a polêmica dos últimos dias. Acreditar que a identidade da autora permaneceria oculta é ingênuo. Uma ingenuidade que se aproxima, aliás, mais da pirraça mimada do que da pureza, e por isso não cola.
É possível argumentar contra o procedimento, contra as próprias justificativas tortas com que o jornalista defendeu a investigação, mas não contra a curiosidade, o sensacionalismo e a lógica do espetáculo da qual a busca parece partir. Tudo isso é uma realidade incontornável, só tenho dúvidas quanto a Ferrante ter tido vontade de escapar dessa realidade. O que ela diz nas entrevistas é uma coisa; o próprio fato de dar entrevistas diz outra. Vejo em Ferrante alguém brilhante que jogou habilmente o jogo.