A certa altura de The 50 Year Argument, documentário sobre a New York Review of Books dirigido por Martin Scorsese e David Tedeschi, o lendário editor da revista, Robert Silvers, é flagrado alimentando um cachorro dentro da redação. A cena prosaica mostra que, para Silvers, a revista quinzenal que ele editou por cinco décadas – desde o primeiro número, em 1963, até sua morte, no último dia 20, aos 87 anos – era uma extensão da própria casa. Para não deixar dúvidas quanto a isso, ele se divertia contando que mantinha uma cama nos fundos do escritório para as noites mais longas de fechamento.
Se a Review era sua casa, Silvers era o anfitrião ideal. A cada edição, ele promovia nas páginas da revista “um encontro de grandes mentes”, na definição do diretor David Tedeschi. Desde o início, a Review reuniu gerações de grandes escritores, jornalistas, críticos e intelectuais: de Susan Sontag e James Baldwin a J.M. Coetzee e Robert Darnton, de Gore Vidal e Joan Didion a John Banville e Ian Buruma. Nas inúmeras homenagens publicadas desde a morte de Silvers, algumas lembranças são recorrentes entre os colaboradores: o livro que chegava de surpresa pelo correio com um bilhete (“Veja o que pode ser feito sobre isso”), a ligação intempestiva para pedir uma reportagem ou tirar dúvidas sobre um texto. Cenas de um diálogo entre editor e autor que podia durar meses, alimentado pela curiosidade interminável e pela leitura rigorosa de Silvers.
Quando entrevistei Silvers em 2013, por ocasião do aniversário de 50 anos da Review, ele deu provas dessa curiosidade ao comentar animadamente os últimos textos que tinha editado, sobre temas tão variados como o projeto de digitalização de livros da Google, novas teorias sobre a consciência humana e o pornô soft da série Cinquenta tons de cinza. Já o rigor ficou claro na forma como definiu seu ofício. “Editar é fazer perguntas”, ele me disse. “O segredo desse trabalho é explorar, caso a caso, as possibilidades de diálogo com os autores, pensando sempre em como ampliar e aprofundar a reflexão deles”. Os frutos desse diálogo podem ser vistos em livros hoje clássicos que começaram como artigos para a revista, como Sobre a violência, de Hannah Arendt, e A doença como metáfora, de Susan Sontag.
Nascido em 1929, no estado de Nova York, Silvers viveu em Paris na década de 1950 e lá ajudou a construir outro marco da vida intelectual contemporânea, a revista Paris Review. De volta aos EUA, nos anos 1960, trabalhou na revista Harper’s, onde publicou um manifesto da escritora Elizabeth Hardwick contra a crítica literária americana da época, na qual ela via apenas “elogio insípido e discordância frouxa, estilo mínimo e textinho fraco, falta de envolvimento, paixão, personalidade, excentricidade — a ausência, enfim, do próprio tom literário”.
Durante uma greve geral da imprensa nova-iorquina, em dezembro de 1962, Silvers se uniu a um grupo de intelectuais que queriam fundar uma revista vibrante e ousada para acabar com o marasmo da vida literária americana. Apostavam que, com a greve, as editoras, por falta de opção, topariam anunciar até em um veículo desconhecido. Assim surgiu, em fevereiro de 1963, a Review, com Silvers e Barbara Epstein como editores – ela mais dedicada à crítica literária, ele ao jornalismo e à não ficção em geral. O arranjo durou até 2006, quando ela morreu e ele ficou sozinho à frente da revista. Com a morte de Silvers, ainda não se sabe quem ocupará seu lugar.
Seja quem for, terá o desafio de manter o estilo cultivado por Silvers: uma mistura nada ortodoxa de crítica de arte, reportagem de fôlego, análise política, comentário social e divulgação científica, com um olho na história e outro no presente. O DNA de revista literária nunca impediu a Review de intervir nos debates públicos mais urgentes das últimas cinco décadas. Opôs-se à Guerra do Vietnã e à Guerra do Iraque. Denunciou Richard Nixon e Donald Trump. Cobriu a queda da Cortina de Ferro, as ditaduras na América Latina, o apartheid na África do Sul e as várias fases do conflito Israel-Palestina. Em 1967, no auge das lutas do movimento negro por direitos civis nos EUA, estampou na capa um diagrama que ensinava os leitores a preparar um coquetel molotov.
Em todo esse tempo, Silvers publicou apenas um editorial, no número de estreia da revista. Em poucas linhas, prometia falar de livros “interessantes e importantes”, nunca dos triviais – exceto para “esvaziar uma reputação temporariamente inflada ou apontar uma fraude”. Dizia ainda querer “sugerir, ainda que de forma imperfeita, algumas qualidades que uma revista literária responsável deveria ter”. Na entrevista de 2013, ele me disse se orgulhar de ter sido sempre fiel a esses princípios: “Somos uma revista de livros e ideias. Livros e ideias. Duas coisas vitais para o mundo”.